quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Homens humildes, criaturas perfeitas

Nesse período de eleições somos convidados a analisar a postura de muitos daqueles que se candidatam aos cargos públicos. Alguns justificam a sua eleição pelos projetos e obras que já realizaram. Cria-se uma imagem de super-homens dessas pessoas a partir dos trabalhos que já fizeram em benefício do povo.


Entretanto, muitas vezes é esquecido o fato de que tais trabalhos não devem ser vistos como méritos dessas pessoas, mas como obrigação daqueles que são eleitos para representar a vontade da população dentro de uma estrutura democrática de governo. Ninguém, portanto, deve justificar suas candidaturas pelo que realizou, mas pelas propostas novas que trazem para melhorar a sua comunidade e, com isso, realizar o seu serviço público.


Essa postura é reflexo de uma concepção social que põe o homem no centro de todos os acontecimentos históricos e políticos. Ele passa a se definir como a única causa, justificação e agente dos fenômenos políticos e morais. Como centro, o indivíduo compreende-se como criador e governador de uma estrutura global que, devido às limitações humanas, foge, muitas vezes, ao controle do homem.


Frente às adversidades psíquicas, sociais e naturais presentes na história, quando não há nenhum valor moral que possa dar norte ao homem e às suas ações, mais cedo ou mais tarde, ele sempre vai se perder em suas opções individuais.


Quando Deus nos aponta a perfeição como meta primeira, ele nos propõe que assumamos o lugar que nos foi preparado: o de criaturas de uma realidade Divina, não o seu lugar. O dicionário Aurélio apresenta o termo perfeito como aquele ou aquilo que “reúne todas as qualidades concebíveis, ou atingiu o mais alto grau numa escala de valores”, e aquele ou aquilo que é “completo, total; rematado, acabado”.


Ser perfeito, portanto, não significa, como a promessa feita aos nossos primeiros pais, ser como deuses. O homem “completo” é aquele que encontrou o verdadeiro sentido de sua existência: o reflexo da criação amorosa Divina de seres que poderiam assumir, livremente, a sua proposta. Nesse sentido, o caminho pelo qual podemos verdadeiramente chegar a essa plenitude da vida não é outro senão pela humanidade. O instrumento para essa construção, que não é palpável (cf. Hb 12, 28), não pode ser outro diferente da humildade.


Sentir-se servo diante da realidade Divina que se manifesta continuamente por meio da história humana e obediente ao seu caráter providente, que ensina a cada dia a olhar a sua Palavra, os grandes exemplos humanos e o mundo, como mestres para o nosso crescimento pessoal e comunitário, é a primeira via dessa humildade. A segunda se dá por meio do ato de se pôr diante do homem como mistério. Como criatura de Deus, a pessoa humana não pode mais ser vista como mero objeto de manipulação, ela vai sempre além. Como produto de uma complexa estrutura histórica, biológica, social e psíquica, o indivíduo deve sempre ser compreendido como mistério, reflexo de um Deus que foge às lógicas e raciocínios humanos.


A promessa de elevação da pessoa que se humilha (cf. Lc 14, 11) diante do mistério de Deus presente na história humana por meio do outro ou dos acontecimentos por ele realizados é o caminho para a construção de sua felicidade, de sua completude.


Tomemos Maria como exemplo. Ela foi assunta ao céu porque soube curvar-se diante do mistério do Outro, do Deus que queria fazer-se carne por meio de sua Palavra. Porque ouviu ela gerou. Humilhando-se para servir ela conseguiu chegar à plenitude de sua humanidade: ser criatura perfeita.


Que nós também possamos assumir essa postura de servos diante do outro (homem) e do Outro (Deus). Esses são caminhos pelos quais podemos construir um sentido para as nossas vidas, ser mais felizes, ser perfeitos.


Não como centro, mas como servidores em sua comunidade, o homem poder caminhar de forma mais livre e feliz entre os mistérios com os quais ele se depara continuamente em sua existência.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A porta é estreita


O Tribunal Superior Eleitoral – TSE vem, recentemente, apoiando um comercial contra a compra de votos nas eleições desse ano. Em um deles, uma mulher troca um hospital bem equipado por uma dentadura. Em outro, um homem troca uma escola para os seus filhos por uma pilha de tijolos. Fingindo fazer uma grande transação comercial, outro homem vende-se a si mesmo por quatro anos, sendo preso em uma caixa junto a outras pessoas que também se venderam.

Quantas outras realidades poderiam ser a essas acrescentadas? Por quanto ou pelo quê nós vendemos a nossa consciência? Ela tem efetivamente um preço? Por que ela é, algumas vezes, vendida por preços tão baixos?

O fato é que estamos inseridos em uma comunidade imediatista. Queremos as coisas mais fáceis, que exigem menos esforço, que não necessitam de construção ou modificação. De forma equivocada, assumimos o ditado popular de que é melhor um pássaro na mão do que dois voando. Aceitamos realidades já prontas, por que simples, e evitamos construir as mais necessárias, as que são essenciais para a nossa existência individual e comunitária.

Conceitos como esforço, sacrifício, trabalho contínuo e perseverante estão a cada dia desaparecendo em uma realidade social que preza pelo fácil, prazeroso e já feito. É esquecido, porém, que essas opções que não estão bem fundamentadas desaparecerão como surgem: de forma rápida. Se quisermos realmente uma felicidade bem alicerçada, que não se desintegre na primeira adversidade, temos que construí-la no sacrifício. Ela querer algo que, muitas vezes, temos dificuldade em oferecer: tempo e esforço.

A figura da porta estreita oferecida por Jesus Cristo (cf. Lc 13, 24), ao ser questionado quanto aos que seriam salvos, apresenta bem a sua proposta de redenção. O homem só pode entrar no Reino de Deus, ou seja, ter uma vida plena e feliz se ele a construir gradativa e paulatinamente. Aceitar realidades fáceis, que não exijam muito trabalho, é querer entrar pela porta larga, uma entrada, porém, que nos leva a caminhos incertos.

A própria carta aos hebreus compreendeu a mensagem do Senhor quando afirma: “No momento mesmo, nenhuma correção parece alegrar, mas causa dor. Depois, porém, produz um fruto de paz e de justiça para aqueles que nela foram exercitados” (Hb 12, 11). Enfrentar a vida como trabalho que tem seus momentos de alegria e tristeza, dor e prazer, altos e baixos, é exercitar-se para tornar-se plenamente homem assemelhando-se àquele que foi plenamente Deus.

Nesse caminho, ver a dor ou o sacrifício não como um mal, mas como algo participante da vida humana é saber sentir a presença de um Deus que é pai e que está constantemente a nos proteger e ensinar. A carta afirma ainda: “o Senhor corrige a quem ele ama e castiga a quem aceita como filho” (Hb 12, 6). Quando aprendemos a sentir o peso da mão de Deus a nos modelar, nossa existência ganha um novo sentido e qualquer sofrimento transforma-se em alegria.

Maria foi testemunha da felicidade de quem procura entrar pela porta estreita. Ela soube curvar-se para adentrar numa realidade que tinha Deus como soberano e soube aceitar a proposta de salvação do homem ao permanecer, em pé, diante da Cruz. A mãe de Deus entendeu todo o sentido do sofrimento de seu filho quando silenciou diante desse mistério e contemplou a grandeza de sua ressurreição.

Que nós também, ao nos deparar diante de realidades fáceis, possamos nos questionar e saber que vai também fácil o que vem sem esforço. Abramos nossos olhos para as situações já prontas e que não requer nenhum esforço, que são postas à nossa frente. Elas nos desviam da possibilidade de crescimento, de entrar por uma porta que é estreita, mas que nos ajuda a exercitar nossa humanidade diante das inúmeras adversidades apresentadas pela vida.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Crescer somente em Deus


“Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judéia”. (Lc 1, 39)

Estamos no mundo das grandezas, dos grandes fatos e heróis, das eloqüências e dos amplos eventos históricos e políticos. O homem passa a se curvar diante de toda grande obra realizada sua inteligência.

Uma vida simples, humilde que sabe oferecer, em pequenos gestos, um sinal maior de humanidade aos outros está sendo rapidamente esquecida. O homem passa a querer ser senhor de uma comunidade que ele mesmo não consegue administrar e não sabe conduzi-la porque não tem elementos suficientes para tal. Não sabe ouvir nem ver a história e compreender o Poder que a organiza.

Celebrar a assunção de Nossa Senhora é festejar a elevação de todo homem que entrega a sua vida a Deus de forma livre e gratuita, sem deixar de lado a sua condição humana.

O texto bíblico, ao apresentar Maria subindo apressadamente para a região onde ficava a casa de Isabel, nos mostra o zelo da Santa Mãe de Deus pelo serviço ao próximo. E até mais do que isso, a imagem de sua subida para a realização desse ofício, por simples que fosse, representa também a nossa necessária subida para realizar o nosso ser Cristão.

Maria só conseguiu subir, e subir apressadamente, porque era livre. Ela, ao correr ao encontro de sua prima, ia de mãos vazias, sem muitas bagagens, preocupações ou pré-conceitos. Por simples fosse aquela ajuda, ela a realizava como a mais importante de sua vida. Daí é que começa a ser desenhada a sua humildade, ela sabia construir uma santa existência por meio de pequenos gestos de bondade.

A grandeza feita por nosso Senhor na jovem de Nazaré só foi possível porque ela conseguia gerar Deus a partir das pequenas coisas. Ao cuidar das roupas da família de Isabel, ao preparar a alimentação, no cuidando da casa, ela conseguia realizar um serviço gratuito e amoroso a quem precisava.

Por não estar interessada no que sua prima viesse a lhe oferecer em troca por aqueles dias de serviço, por fazer aqueles trabalhos de forma livre e gratuita, ela conseguia viver a dimensão maior do amor: o ágape, o amor doação, e doação livre. Esse exercício foi tão contínuo em sua vida que Deus resolve a escolher como instrumento de sua encarnação. Por meio daquela que sabia realizar um amor gratuito e contínuo, esse foi materializado em nossa humanidade: Jesus Cristo.

Maria sabia subir sem grandes dificuldades porque compreendia que ia realizar um serviço grandioso e um trabalho que exigiria dela um total despojamento de suas próprias vontades e interesses. Do mesmo modo, também nós que desejamos encontrar o sentido da vida que se realiza na contemplação da face de Deus, realidade perfeita, devemos também correr, decididos, para um serviço de entrega a quem mais precisa de nossa ajuda.

Essa corrida para a realização de um amor doação, assim como em Maria, se dá por meio de uma subida. Essa, como todas as outras, exige nosso esforço e sacrifício para não haver desistência no meio da elevação. Nesse caminho sempre haverá deslizes, tropeços e até quedas que podem nos fazer voltar um pouco, mas, com os olhos fixos na proposta inicial não há como haver desistências.

Possamos ver em Maria o exemplo de serva que foi elevada aos céus porque sabia subir livremente até às alturas do amor gratuito, e de uma entrega livre e integral de sua vida à pessoa humana. Construamos também a nossa elevação à vida feliz. Essa só é possível quando aprendemos a subir, livre e decididamente, para o amor doação que só é pleno em Deus.

Educar para a vida



Educar nunca foi uma missão fácil. Fazer com que o outro compreenda a estrutura social que o cerca não é uma atividade simplesmente técnica a ser realizada por um profissional do ensino. Isso acontece porque não se “ensina” a viver.

A palavra ensinar lembra o “ensignar”, ou seja, marcar com signos, colocar marcas nas pessoas para que elas apreendam (“prendam em si”) um conhecimento externo. Porém a educação deve ir além dessa marcação ou “fôrmação” (“colocar numa fôrma”), pois deve mostrar ao indivíduo que o mundo que ele vai enfrentar é mais sério do que se imagina.

A recente polêmica acerca da violência infanto-juvenil realizada pelos pais abre espaço para uma ampla discussão: Os pais ainda podem continuar castigando seus filhos por meio das “palmadas”?

Esse tradicional modo de “exemplar” os filhos foi, aos poucos, sendo substituído com a contribuição da psicologia e da psicopedagoga. Há outros modos de mostrar aos educandos que a sociedade exige pessoas que sigam normas e limites morais. Técnicas de imposição de regras por meio da punição com privação de algum bem e repetição insistente desse castigo, são exemplos de que a violência pode ser substituída.

Mesmo assim, a palmada foi um modo, mesmo rústico e tradicional, que os nossos pais encontraram para mostrar que há limites para as nossas ações. É um símbolo a afirmar que a justiça presente no mundo pune os que erram, que a dor é uma conseqüência lógica do desvio da verdade e que, cedo ou tarde, ela sempre chega.

É certo que a permissão das “palmadas” realizada pelos pais já levou a muitos abusos. Mortes, traumas e a geração de mais violência familiar e social tendem a se multiplicar a partir do momento em que tais crianças são castigadas de modo absurdo. Mais do que um castigo ou um modo de exemplar, esse tipo de violência excessiva é reflexo de uma estrutura social que também é violenta, sem limites e valores que possam ser nortes para as suas ações.

A grande responsabilidade que é dada aos pais de educarem os seus filhos para a vida está dentro da proposta evangélica do servo que recebe a grande responsabilidade de guardar os bens do senhor (cf. Lc 12, 36ss). A grandeza na geração, cuidado e educação das crianças que é dada primeira e fundamentalmente à família é uma missão que requer mais do que técnica mas, um amor que é doação e esforço contínuo para querer o bem do outro.

Fazer com que o outro compreenda que a vida possui um conjunto de valores e normas a serem respeitados é um dos principais focos da educação, ao lado da participação crítica social e da construção de um mundo justo e fraterno.

Saber que a punição é a conseqüência necessária para os que optam por caminhos equivocados seria o sentido principal das “palmadas”. Entretanto, essa se transforma numa faca de dois gumes na medida em que se perde o controle dessa simbologia, do sentido desse “exemplar”, gerando uma violência que cresce gradativamente.

Que tenhamos o exemplo daquela que foi a maior educadora de todos os tempos. Maria é verdadeira mãe que soube ensinar ao seu filho que o caminho da vida feliz estava na obediência integral à vontade de Deus. Ela sabia da responsabilidade de gerar no seu ventre o Filho do Homem, aquele que, sendo verdadeiramente humano, foi verdadeiramente divino.

Devemos ver na mãe de Jesus o exemplo daquela que soube ensinar que a construção do homem estava em uma vida simples e modesta, organizada por uma ordem disciplinar da vida. Deixar de corrigir seria um risco que os pais correm em entregar ao mundo pessoas não preparadas para enfrentar as suas vicissitudes. Os reflexos de uma omissão familiar estão sendo enfrentados por todos nós que somos vítimas da violência, dos vícios e das múltiplas corrupções.

Aprendamos a ter esse temor (cf. Lc 12, 48) diante desse grande encargo que é educar para a vida e, mais ainda, tremer diante do homem que deve ser modelado à luz do Filho de Deus que soube aceitar a sua plena condição de criatura e por isso soube viver plenamente a sua existência.

Ricos para Deus


Se Deus pedisse contas de nossa vida ainda hoje, o que apresentaríamos a Ele? Se nossa vida tivesse um fim, o que deixaríamos de exemplo para aqueles que nos cercam? O que faria com que nós permanecêssemos na memória dos nossos conhecidos? Quais ensinamentos e testemunhos estaríamos deixando para a comunidade em que vivemos?

A festa de Sant’Ana da cidade de Caicó, assim como tantas outras grandes festas de nossa cultura é o momento em que nós devemos voltar os nossos olhos para o sentido de nossas práticas e posturas. É o momento em que as famílias se encontram, renovamos as nossas raízes culturais e históricas e damos o sentido de nossa fé. Mas é o momento onde alguns fatores de uma cultura consumista e exterior também podem se revelar.

A proporção entre os que participam dos eventos religiosos e todos os outros que vão para os encontros somente sociais é grande em relação a esses. Isso revela a postura de que estamos mais interessados em mostrar o que temos e somos em detrimento do que realmente somos ou possuímos.

A “perca de tempo” em estar diante de uma celebração litúrgica ou o sacrifício por qualquer outra ação religiosa ou simplesmente humana é facilmente trocada por um momento de descanso ou lazer com o que mais gostamos fazer ou “merecemos” diante de um mundo de tantos trabalhos e esforços. Silenciar em um período de nosso dia ou repensar os nossos valores tornou-se uma ação cada vez mais complexa em uma cultura como a nossa.

A mentalidade de um acúmulo irrefletido ou de uma técnica sem limites faz com que o homem se torne escravo de suas próprias ações, não conseguindo nem mesmo refletir sobre o sentido de suas práticas. A riqueza ou os bens que ela proporciona passa a ser buscada como um fim em si mesmo, sem um questionamento mais aprofundado sobre o seu valor para o homem e a sua comunidade.

É o próprio Verbo de Deus, feito homem, quem nos adverte: “... mesmo que alguém tenha muitas coisas, a sua vida não depende de seus bens” (Lc 12, 15). As posses materiais, motivadas por uma estabilidade econômico-financeira, devem fazer com que o homem tenha uma vida com dignidade, junto com os que estão próximos dele. Feliz e em paz, ele pode ser reflexo do desejo de Deus de mostrar-se através de um homem plenamente realizado.

Entretanto, a vida do homem não depende de seus bens pelo fato de que ele não é só matéria, mas espírito, emoção, razão e trabalho, indo além do meramente físico. Prova disso é o próprio mistério da ressurreição de Jesus que fez com que ele fosse sempre lembrado para sempre a partir do momento em que se olhou para todas as suas ações e seus ensinamentos e comprovaram que ele estava vivo. Os discípulos de Emaús também abriram seus olhos para o fato de que a morte não tinha acabado com a cruz, mas que os ensinamentos de Jesus deixaram provas concretas de sua presença enquanto as suas ações fossem repetidas.

A Maria é o exemplo de um serviço e uma entrega a Deus que se constituiu de forma gratuita. Qualquer riqueza que estivesse a sua frente era considerada um nada diante dos bens que Deus daria por meio daquele sim livre, não só a ela, mas a toda humanidade. Todo o culto que prestamos a ela se reveste de admiração por uma riqueza que foi construída sobre a obediência, pobreza e simples dedicação ao mistério de geração do Filho do Homem.

Que nós também possamos nos preocupar diante de uma riqueza material que é colocada acima da própria pessoa humana. O homem, como plenitude da criação, deve ser sempre o centro de todas as ações humanas, a maior riqueza social e o motivo de nossas ações na busca da glorificação de uma humanidade sempre atenta à construção dos bens de Deus.

Família, comum unidade, comum doação


O recente caso do crime cometido pelo goleiro Bruno contra a sua namorada, seguido pelo fim trágico que ele deu ao corpo daquela mulher, assim como as discussões sobre a desburocratização no processo de divórcio apontam para uma estrutura familiar que se vê em xeque. Não podemos tratar tais casos como fatos isolados que merecem reflexões distintas, pois ambos são produtos de um modo de relacionar-se que se fundamenta em uma troca material de favores.

Em uma cultura que valoriza o homem pelo que ele pode oferecer de objetivo para a comunidade, as relações sociais passam a ser permeadas também por essa “troca de favores”. O casamento, como uma instituição que manifesta mais um modo humano de relacionar-se, não foge a essa influência.

A justa procura por um divórcio que seja “instantâneo” é reflexo de um conflito que é mais amplo e complexo do que se imagina. Os casamentos estão se tornando cada vez mais instáveis. Tal inconstância é produto de uma falta de clareza e planejamento de vida quando se refere à opção por uma vida comunitária familiar.

A busca de uma união que se fundamenta somente na troca de bens, na utilização do parceiro como meio para o próprio bem estar, é o motivo fundamental para a descoberta de que a união conjugal não se sustenta por essa troca de bens que são perecíveis. A instantaneidade de uma separação fomentaria somente a busca de uma nova relação que desse satisfação à pessoa, mas que a levaria a mesma conclusão: a beleza, ao prazer ou a riqueza são passageiras.

O assassinato cometido pelo goleiro foi um dos vários conflitos que surgiram diante de um tipo de relação mal planejada, levada somente por interesses imediatos. A necessária responsabilidade mútua, que é fator indispensável na relação conjugal, foi negada perante uma busca de felicidade individual e não partilhada.

A imagem evangélica de um Deus que é Pai, e por isso cuida dos seus filhos, e lhes dá o que é melhor nos lança para a proposta de construção de uma família cristã. Os pais, como os primeiros a construírem tal comunidade, são responsáveis por uma disponibilidade que faz com que o bem do outro venha antes do seu próprio.

À semelhança de Deus, que dá o melhor de si, que é seu próprio Filho, Jesus Cristo, para a salvação dos homens, a família que quer seguir essa mesma proposta de felicidade deve também ter a doação como primeiro movimento dessa busca. Pais que deixam de lado muitas de suas opções para a educação de seus filhos bem como filhos que se deixam ser modelados pelos pais ainda são vias para uma comunidade menos materialista e individualista e mais humana.

A festa de Sant’Ana é o momento para refletir sobre o valor de uma família. Ao olhar para imagem daquela que foi a avó do Salvador, não devemos ficar encantados somente com sua beleza e o seu valor simbólico ou histórico, mas devemos ser capazes de ver a grandeza de ensinamento que ela nos traz. Mais do que uma imagem, ela nos educa para ver a família como berço de construção de homens e mulheres firmes na fé e na opção pela vida.

Maria é exemplo dessa proposta. Ao ser educada no colo de sua mãe sobre os caminhos deixados por Deus ela se abre a esse caminho e participa diretamente dos planos de salvação da humanidade. Nossa Senhora é fruto de uma estrutura familiar que estava longe de querer apenas uma satisfação individual, mas sim, dedicada à entrega pessoal de cada vida para os planos de construção de uma sociedade mais fraterna.

Ação necessária


O homem moderno é marcado pela técnica. A centralidade da razão como fonte de todas as ações sociais e políticas em nossa sociedade faz com que a busca progressiva de instrumentos que facilitam a relação entre o homem e mundo se dê de forma cada vez mais eficiente. Essas características vão aos poucos permeando até mesmo as relações humanas: tudo passa a ser visto aos olhos de uma razão que torna tudo um instrumento, objeto de uso e manipulação do mercado financeiro.
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Max Weber (1864-1920), filósofo e sociólogo alemão, denomina essa realidade como “burocratização do mundo da vida”. Ou seja, a economia passa a permear tanto a realidade social que torna o próprio homem e suas relações como fatores integrantes desse processo econômico. Todas as interações ganham um cunho econômico e financeiro transformando grande parte das esferas sociais em burocracias, ou seja, relações objetivas.
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Essa burocratização do mundo faz com que as próprias pessoas também atuem em suas comunidades de forma objetiva, sempre com vista na eficiência, objetividade e no aperfeiçoamento de suas ações. O mundo passa a ser permeando por um fazer que perde, aos poucos, seu sentido de ser. As pessoas trabalham para acumular bens que darão a ela um bem estar. Tal satisfação, porém, tem em vista somente a geração de forças para um novo trabalho, uma nova prática profissional de acúmulo permanente.
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O próprio homem, aos poucos, vai se tornando escravo de sua própria técnica, de sua própria prática racional que instrumentaliza o mundo e a vida. Mas ele perde a si mesmo como agente de modificação de uma comunidade que é feita por homens e não por máquinas. Valores morais que fortalecem as relações sociais vão perdendo lugar em uma estrutura que tudo quer objetivar, ou seja, tornar objeto de acúmulo.
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Maria, irmã de Marta, é o exemplo de mulher que não deixa se levar por uma prática que toma conta da vida humana. Ela sabe que o que é central em sua vida é ter a Palavra de Deus como centro de todas as suas atividades, daí a confirmação de Cristo: “Maria escolheu a melhor parte” (Lc 10, 42). A questão não é, portanto, a aceitação de uma opção integral, no caso o está próximo de Jesus ouvindo a sua Palavra, e a negação de qualquer participação comunitária.
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Maria escolheu a melhor parte porque essa era a mais necessária (cf. Lc 10, 42), a opção fundamental que deveria acompanhá-la em suas ações futuras. Marta, mesmo desenvolvendo atividades positivas, estava esquecendo a principal atitude caritativa, que é o acolhimento da pessoa do outro que vem ao nosso encontro. Pois mais que estivesse preparando toda a casa para a estadia de Jesus, ela esquecia o sentido de tudo aquilo, de que estava trabalhando para um acolhimento. Ela estava fazendo uma troca exclusiva entre os fins, que seria a acolhida do outro, pelos meios, desenvolvidos nos seus diversos afazeres domésticos.
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A “melhor parte” expressa por Jesus implicava a aceitação de uma posição primeira que nos leva a ouvir a Palavra de Deus antes de qualquer postura, sabendo tomá-la como luz para um caminho que pode ser trilhado de formas diversas. A verdadeira postura cristã é aquela que age conforme um ideal de vida, um sentido que é segurado por meio de um norte que tem na escuta da voz do Senhor seu primeiro motivo.
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A Virgem Maria é também aquela que soube ouvir primeiro a proposta que o Senhor tinha para sua vida. A abertura conseqüente que ela assumiu foi o primeiro passo para que o Filho do Homem viesse a se tornar pleno em nossa humanidade. Que por esses exemplos, possamos estar sempre atentos a ouvir primeiro a voz do Senhor que fala constantemente na nossa existência e saber escolher o caminho que mais nos aproxima da felicidade e salvação.

“Ide aos meus irmãos”


A comunidade que faz o seminário Santo Cura d’Ars se alegra por celebrar as festas em honra ao trigésimo aniversário de ordenação sacerdotal e comemoração natalícia de seu bispo diocesano, Dom Manoel Delson Pedreira da Cruz, OFMCap.

Mais do que um simples contentamento, estamos firmes na certeza de que Deus continua sempre a providenciar pastores para seu rebanho conforme o Seu desígnio de santificação da humanidade. Para isso, Ele está sempre a enviar sinais de homens que conseguem, dentro de seus limites, ser presença, testemunho de uma fé que é prática e que é sinal para os outros.

A alegria de um povo é saber que tem um pastor que anda na frente de suas ovelhas mostrando-lhes o caminho a ser seguido. Nessa postura, ele não está superior aos seus, mas apresentando um caminho pelo qual ele mesmo passou, experimentou e tem a alegria de mostrar aos seus irmãos, de apresentar que esse é via de salvação, indicando-o com a própria vida.

Mesmo guiando, tal pastor também sabe entrar junto ao seu rebanho, aproximando-se e reconhecendo as deficiências de suas ovelhas, as suas diversidades de valores e habilidades. Próximo, ele configura a postura do Cristo que sente compaixão do seu povo porque está presente na humanidade.

O pastor, conformado a Jesus Cristo, aprende a ficar, muitas vezes, no último lugar, pois sabe que seu ministério é um serviço. Ele se faz presente em uma comunidade local para dar continuidade a um projeto milenar de condução da humanidade à uma proposta de elevação da pessoa humana até Deus. Sua posição não é de centro, mas referencial, de lugar onde se pode buscar um norte para o caminhar eclesial.

O líder que serve está atrás também para poder ver as ovelhas que, durante a caminhada, se desviam. Estando no último lugar, ele pode correr a tempo e reconduzi-la ao caminho da verdade e da vida mostrado por Deus em Jesus Cristo.

Em todas as posições o pastor que está junto ao seu povo mostra que é presença, imagem e sucessor dos apóstolos que foram enviados a todos os lugares do mundo para anunciar a proximidade do Reino dos Céus. Esse, que é realizado não com o fim de nossa vida, mas por meio de sua plena aceitação, não pode ser construído quando faltam referenciais, e o bispo é um deles.

Nós, que formamos o Seminário Diocesano de Caicó, rogamos a Deus para que a Igreja, que se faz presente em todo o mundo, tenha sempre pastores comprometidos com o seu rebanho e que, em nenhum momento, fujam da missão que lhes é proposta, mesmo à proximidade do lobo que devora ou do ladrão que quer roubar algumas ovelhas para si.

Dando continuidade à postura de São Francisco de Assis, Dom Delson consegue ser presença na comunidade diocesana de Caicó, sinal da preocupação de Deus com o nosso povo na manutenção de um caminhar cristão sustentado na fé e na ordem, por meio de uma vida simples e prudente. Nossa comunidade agradece a Deus, por que sabe que temos um bispo que sempre está disposto a atender a ordem do Senhor para manifestar o seu projeto de atração de todos os homens para Si quando pede aos que querem segui-lo: “Ide aos meus irmãos”.

Firmes na fé


A Igreja, como anunciadora de uma Verdade revelada, sempre foi atingida por muitas críticas. Ela será sempre perseguida porque tem a coragem de dizer uma Palavra que não agrada a todas as pessoas. Mesmo quando seus próprios fiéis são incoerentes com essa mensagem, ela está sempre firme de que a ordem que recebeu do Cristo na Cruz é Palavra de Ressurreição.

Em uma cultura do prazer sem limites, do lucro individualista e do pensar relativista, a Igreja firma o passo na defesa inquestionável da vida humana e na centralidade do homem como eixo que deve nortear todas as ações morais e políticas da sociedade. Logo, os que querem dar continuidade a uma estrutura como aquela, fazem de tudo para destruir essa fonte anunciadora de Vida.

As críticas históricas quanto à perseguição aos que iam de encontro à Doutrina Católica ou os recentes esclarecimentos quanto aos casos de pedofilia de alguns padres da Igreja demonstram apenas que ela é constituída por homens. Porém, contrários aos muitos outros crimes sociais cometidos durante a história da humanidade, esses mesmos homens sempre demonstraram sentimento de arrependimento e remissão. Isso ocorre por que eles estão em uma instituição que está aberta a uma realidade muito maior do que tais ações.

A abertura de Pedro ao reconhecimento de Jesus Cristo como enviado de Deus, e não como um revolucionário político ou fundamentalista religioso, fez com que Nosso Senhor confiasse a um homem limitado, a guarda de sua Igreja. Mesmo sendo construída e constituída por homens, ela se firma em uma Palavra Divina, fazendo com que todos estejam abertos à ação modeladora e permanente do Espírito de Deus.

Ao celebrar a Solenidade de São Pedro e São Paulo, a Igreja apresenta a necessária dimensão discipular e missionária para os seus fiéis. Pedro, que recebe a confiança de Cristo por meio de sua livre decisão (cf. Mt 16, 16) fundada na abertura à mensagem do Senhor, desdobrando-se em obediência a essa Palavra (cf. At 12, 7ss) e Paulo, como aquele que, depois de ouvir o chamado de Jesus, segue os seus passos com firmeza (cf. 2 Tm 4, 7), anunciando a todos essa experiência de vida (cf. 2 Tm 4, 17), são os verdadeiros pilares que firmam a ação dessa Igreja.

Que nós também possamos assumir essas posturas sendo fiéis seguidores da “Palavra-Pessoa” Cristo Jesus. Essa certeza só é confirmada quando aprendemos que nossa caminhada de cristãos não pode ser fortalecida quando a fundamos em filosofias individuais ou pessoas, mas quando compreendemos que ela está muito além e acima de nós.

Olhar apenas para os erros da Igreja, deixando de lado seu caráter humano, é esquecer que ela traz um grandioso bem para os homens, por apresentá-los o caminho que leva a Cristo, e que sua postura de reconhecimento dos erros e correção desses nos ensina que nossa humanidade não nos impede da busca de uma perfeição de vida.
Maria é para nós o exemplo de confiança na Palavra de Deus. Mesmo contradizendo todas as regras sociais e morais de seu tempo, ela soube estar aberta ao que o Espírito tinha a lhe falar. Por meio dela, a Igreja, como encontro entre Deus e homem, recebe o seu primeiro fundamento.
Sabendo-se deixar guiar por essa Palavra de Vida que é transmitida pela Santa Mãe Igreja, Maria nos ensina que o plano de santificação Divino, nunca será obra humana e estará sempre além de nossas forças, fazendo-nos também confiar na promessa de Jesus ao afirmar que “o poder da morte nunca poderá vencê-la” (Mt 16, 18).

Livres para servir


Os diversos conflitos enfrentados pela sociedade atual, desde os familiares, passando pelo campo político, bioético, chegando à própria autocompreensão do homem, ou seja, pelo modo como ele se vê em sua comunidade, sempre perpassa pelo conceito de liberdade. Esse que geralmente é associada ao de autonomia (autos = própria, eu; nomos = lei), significando a atitude do homem de ter dentro de si a compreensão da lei, é compreendido como o direito do homem de agir conforme a sua própria inteligência.

Mas será mesmo que podemos confundir o conceito de liberdade humana com o ato de se fazer o que se quer, conforme os nossos próprios desejos? Essa atitude poderia ser afirmativa até o momento em que nos compreendemos como seres com os mesmos desejos. Porém, como sabemos que a realidade não é bem assim, devemos estar atentos ao momento em que nossos pensamentos e atitudes livres entram em choque com os pensamentos e ações dos nossos irmãos.

Diante do conceito moderno de liberdade está a proposta evangélica de uma ação livre fundada na doação da própria vida. O Apóstolo é bem claro ao afirmar que a nossa liberdade não é para fazer o que quisermos, mas para servir (cf. Gl 5, 13). Isso, para muitos, parece claro, mas de fato não é. Temos que ser livres para que possamos utilizar dessa liberdade para um serviço também livre, de doação integral de nossa vida para o bem do outro.

Somos escravos de tudo aquilo que nos prende e o pecado é a maior das prisões por que nos aprisiona e nos impede de viver a nossa liberdade de filhos de Deus. Pensamentos, atividades ou pessoas que nos impedem de viver o serviço de construção do Reino de Deus (cf. Lc 9, 58-62) também nos fazem perder uma liberdade integral.

Essa liberdade, entretanto, não se confunde com um individualismo ou isolamento por parte daquele que se diz livre, isso seria um aprisionamento em si mesmo. A autêntica autonomia de vida proporciona ao homem a possibilidade de ele caminhar por muitos espaços de ação e serviço, de construir o Reino de Deus em qualquer ambiente que esteja, tendo o mínimo de preocupações que impeçam a realização daqueles.

Crimes, homicídios, corrupções, desvios morais são também conseqüências lógicas de uma opção livre que o homem faz quando não ouve a voz do verdadeiro Caminho. O próprio Jesus não castiga quem o rejeita (cf. Lc 9, 53-56), a dor que o homem venha a sentir ao estar distante de Deus é apenas o resultado de seu pecado, é o produto da má utilização de sua liberdade para a satisfação de seus próprios pensamentos.

A primeira atitude daquele que quer ser realmente livre é renunciar a tudo o que esteja prendendo-o, não com pensamentos “positivos”, mas sabendo definir metas concretas de ação para essa libertação. A primeira das correntes a ser quebradas são as nossas próprias vontades e os nossos pensamentos, pois eles são sempre os primeiros a nos aprisionar. Eles devem ser postos de lado em relação àquela Palavra Libertadora dada em Jesus Cristo.

Para que essa atitude realmente tenha frutos, devemos ainda estar atentos aos ensinamentos que o Espírito de Deus tem a nos dar por meio dos acontecimentos e pessoas que surgem em nossas caminhadas. Somente na abertura integral de nossas vidas à ação modeladora do Espírito é que podemos nos tornar verdadeira e efetivamente livres para o serviço.
Maria é aquela que soube entregar sua vida ao mistério de Deus, deixando-se ser modelada em função da edificação do Reino por Ele prometido. Ela soube dar um livre sim e, por ele, a Palavra de Deus veio até nós, não ficando presa ao que poderiam pensar ou ao que poderiam fazer com ela. Maria apenas confiou. Que seu exemplo possa nos dar forças para dar um contínuo e livre sim a Deus, sabendo entregar nossas vidas ao Seu projeto de santificação da humanidade e de sua libertação integral.

A luta pela vida


O mundo moderno é caracterizado pelo desenvolvimento técnico-científico, por um progresso que coloca o homem diante das maiores descoberta, de instrumentos que facilitam a sua vida, de meios que geram economia de tempo e capital. Palavras como eficiência, eficácia, efetividade, objetividade e pragmatismo reinam numa cultura onde o aumento da riqueza pessoal e social ganham centralidade em qualquer ação.

O problema do desenvolvimento de uma mentalidade como essa está no surgimento na cultura do “mais fácil”, do mais cômodo, do menos doloroso e menos trabalhoso. Além de ser criada uma mentalidade humana estagnada, com a perda de esforços para a construção dos objetivos previstos pelos homens, é fortalecida a posição individualista, tão valorizada em uma sociedade que perde, aos poucos, os seus valores morais.

O homem passa a encerrar suas ações somente no que mais se identifica, no que gosta ou no que tem mais habilidade para atuar. O que é diferente, árduo, incongruente com sua personalidade passa logo a ser afastado de suas atividades. A atitude de Narciso é repetida: ele, nas palavras de Chico Buarque, “acha feio o que não é espelho”, distancia e nega tudo o que possa trazer sacrifício ou entrega.

Jesus, “o messias de Deus” (Lc 9, 20), mostra ao mundo que a grandeza do homem está em afirmar sua vida pelo que ela é de fato, caminhada rumo ao céu. Entretanto, essa caminhada que eleva o homem a um estágio superior à sua condição limitada não é fácil. É uma subida que exige esforço, pois nos coloca diante de nosso próprio peso e exige que deixemos para trás muitas coisas que nos pesa. Se isso não acontece, corremos o risco de parar no caminho ou, pior, cair, ferindo-se na distância de Deus.

Nessa subida, a cruz é o nosso maior peso, são as nossas limitações, nossos erros, dificuldades e o que realmente nos afasta de Deus. Também nessa subida, temos que deixar de lado muitas coisas, muitos de nossos desejos, sonhos, objetivos pessoais. Preconceitos, rancores, mágoas e individualismos que não são largados nesse caminho de ascensão, só serão mais um peso que carregaremos e no atrapalharão nessa elevação.

Cristo nos ensina a deixar de lado tudo isso que nos pesa, tomar nossa vida, carregá-la e entregá-la como doação livre ao seu projeto de verdadeira humanização e libertação do homem. Com nossas virtudes e habilidades teremos sucesso, mas um sucesso que é somente social, material, nada mais além disso.

Ao ir pelos caminhos mais fáceis, o homem corre o risco de ganhar uma vitória passageira. Nesse movimento, a própria existência passa a ser negada, pois será esquecido o fato de que ela é contingente, é associação de dor e prazer, vitórias e fracassos, subidas e descidas, em síntese: uma luta pela vida. E é o próprio Jesus quem nos questiona: “... que adianta o homem ganhar o mundo inteiro, se perde e destrói a si mesmo?” (Lc 9, 25).

Que nós possamos assumir uma postura missionária de forma integral, anunciando a pessoa de Jesus Cristo primeiramente com a nossa própria vida, seguindo o seu caminho rumo à cruz. Essa, que não se esgota no sacrifício de uma vida, mas na sua pela afirmação, é para os homens o caminho ordinário para a ressurreição.

Maria, como aquela que soube entregar sua vida à divina Providência, carregar o peso da responsabilidade de levar em seu seio a Palavra de Deus e do risco social de não ser compreendida, é aquela que nos ensina a ser verdadeiros testemunhos do grande mistério que é a luta pela afirmação da vida.

Uma fé que perdoa




Em uma cultura de raciocínio no lógico, da lei da ação-reação, do “bateu-levou”, da punição correspondente ao delito, corremos o risco de perder o homem em sua integridade e complexidade, perdendo o valor que ele pode trazer para as relações sociais. Estamos arriscando em jogar a água suja, pelo risco da criança ir junto.

Ao “tachar” os outros como orgulhosos, corruptos, soberbos ou doentes, física ou psicologicamente, estamos inserindo-lhes em redomas de vidro, não deixando que eles se manifestem e demonstrem a sua complexidade, amplitude e possibilidade de ser sempre mais. Quando colocamos etiquetas nos homens, pensamos que já conhecemos seu espírito, achamos que uma de suas qualidades ou limitações pode dizer tudo sobre ele.

Cristo é aquele que vai além, exatamente porque é capaz de entrar no coração do homem sabendo ver também a sua história de vida. Ele sabe que ninguém pode ser completamente culpado pelos seus pecados, pois compreende que estamos envoltos em imperfeições. Porém, mesmo com tudo isso, o perdão que ele poderia mostrar era condicional, exigiria uma postura daquele que estava afastado.

A mulher pecadora foi além de seus limites quando chegou aos pés daquele que era o verdadeiro Santo. O pecado se encontra com a graça por meio de uma fé que deseja a superação, o fim de uma vida de erros e limitações. É no amor que as contradições se tocam e desenvolvem-se mutuamente. É no amor onde o perdão pode surgir verdadeiramente.

Foi por meio da livre entrega daquela mulher, na doação de sua vida à Jesus que suas limitações foram sendo contornadas. A vida de erros, dores e lágrimas passou a ser colocada aos pés daquele que entende que somos seres imperfeitos, mas que queremos a felicidade. Deus não quer nossos dons, habilidades ou boas ações, mas somente nosso esforço de busca pelo crescimento e superação.

É nesse sentido que o cristão não pode se deixar levar pelos discursos absolutistas da sociedade em querer solucionar os seus problemas apenas os afastando da sociedade, excluindo-os da integração social. Quando somos capazes de trazer aquele que erra para junto da comunidade e mostrar que ele tem uma dignidade que o torna tão homem quando qualquer outro, podemos fazer diferente, à imagem de nosso Senhor.

Jesus soube mostrar à mulher que ela era capaz de superar os próprios pecados quando abria sua vida ao outro por meio da caridade. Ela, como o fariseu, não deu parte de seu tempo ou de sua riqueza, mas o que tinha de melhor: sua vida. A mulher se humilhava diante da pessoa do outro entregando tudo o que tinha para que ele fosse honrado.

“Sua fé salvou você. Vá em paz!” (Lc 7, 50). Mais do que uma absolvição, Cristo mostrava a ela, assim como a todos os homens, que o perdão de nossos erros e a possibilidade de superá-los está na capacidade que temos de descentralizar nossas vidas e doá-la ao outro, de entregá-la em sacrifício para que o homem seja beneficiado com os meus dons.

Que esse testemunho seja luz para as nossas vidas, fazendo-nos deixar de buscar somente o que nos beneficia e nos faz bem para se lançar ao outro entregando a ele o que temos de melhor. Que o Espírito do Senhor nos dê foras para permanecer em um caminho de entrega livre ao mistério da pessoa humana, vendo nele reflexos da Perfeição.

O novo pão


Diante de alguns problemas em nossas comunidades, quase sempre somos tentados a apontar a responsabilidade dos fatos ou para os indivíduos que sofrem ou para o contexto em que vivem. Mais do que uma “análise” sobre o problema, essa concepção reflete a nossa própria tentativa de isenção dos acontecimentos.

O homem tem fome de um sentido para a sua vida. Esse vai sendo buscado de várias formas, algumas que trazem verdadeira felicidade e outras que o desvia de um plano humanizador de sua personalidade dando a ele uma alegria passageira.

Os discípulos, ao verem a fome do povo tiveram a mesma postura que temos, queriam que aqueles homens saíssem e buscassem fora o alimento de que precisavam. O que eles tinham parecia não dar para alimentar tanta gente.

Cristo mostra uma solução que está além das respostas humanas e dos métodos racionais que geralmente queremos dar para nossos conflitos. A solução estava bem diante dos olhos deles, tinham em suas mãos a possibilidade de alimentar aquele povo, pois havia alimento, só faltava organização e uma divisão justa desses (cf. Lc 9, 14).

Sob a palavra de Cristo, aquele pão multiplica-se, torna-se acessível para todos os que ali estavam e para todos os que seguem essa mesma ordem: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Lc 9, 13). Somos nós, os seguidores de Jesus, os primeiros responsáveis em tornar possível essa realidade, em dar alimento e vida aos outros por meio da Palavra de Deus que, em Cristo, se torna caminho a ser seguido.

Com esse novo pão, não precisamos mais buscar fora o que está diante de nós, o que está dentro de nós. É dada uma nova responsabilidade, a de ser alimento para outras pessoas, de tornar-se pão, doando-se para a construção do Reino de Deus sob a luz daquele que foi o sacrifício pleno, o pão enviado do céu e que alimenta verdadeiramente o homem.

O “novo pão” faz com que a pessoa saia da postura de uma crítica distante de seu contexto para a de agente de transformação e santificação humana. Por meio de suas capacidades técnicas e racionais, ele passa a ser o principal responsável pelos conflitos que surgem, mas também o primeiro capaz de solucioná-los.

Que Deus também possa fazer crescer em nós o espírito de responsabilidade que nos torna aptos a sermos alimento e força em nossas comunidades. Que não mais projetemos a responsabilidade dos fatos para os outros nem somente para o contexto em que vivemos, mas nos sintamos capazes de saber retirar de nós mesmos o alimento que dá sentido às nossas vidas sendo também luz para os que estão ao nosso redor. Para isso, a Palavra de Deus, em Cristo, se torna esse novo alimento que fortalece o homem em sua caminhada para a plenitude da vida que se encontra em sua plena humanização.