quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Homens dialéticos

Os discursos políticos na disputa para o segundo turno ainda giram em torno das mesmas justificativas: o que foi feito pelo candidato, o que a oposição fez de errado, como era a vida passada dos concorrentes...
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A conclusão que poderíamos tirar desse tipo de discussão é uma só: não votar em ninguém. Se formos olhar mesmo para o passado, ninguém seria digno ou capaz de administrar esse país. As propostas políticas continuam passando longe de serem consideradas...

Esse tipo de postura é resultado do fato de que vivemos numa sociedade isoladamente técnica e objetiva. O mérito é dado pelos trabalhos já realizados, em quantidade e qualidade, apegando-se somente ao que vemos e ouvimos. Esquecemos, nesse caminho, que somos homens em construção, seres em crescimento.

O conceito filosófico de dialética estudado pelo pensador alemão Friedrich Hegel (1770-1831) apresenta bem essa dimensão de expansão contínua de determinada realidade. Segundo ele, haveria certa tese, que receberia diante de si, uma antítese, algo que a contrariaria, opondo-se a ela. Nesse desequilíbrio, a tese absorveria o valor de sua contradição, aquilo que ela tem para contribuir à primeira realidade formando, assim, uma síntese, ou seja, uma tese aperfeiçoada.

O homem, nesse caminho, pode ser compreendido como dialético no sentido que ele não é só constituído de passado, mas é também perspectiva de futuro, é um conjunto de esperanças que lança-se para frente. Tudo que vem até ele, de com ou ruim, é possibilidade de expansão.

A oposição evangélica entre o fariseu e o cobrador de impostos demonstra a proposta de Jesus da necessidade de homens que reflitam sobre o seu futuro, que renove suas esperanças, que não ficam se atolando em um passado que não volta mais. Como passado, o que já ocorreu só tem a nos ensinar. Podemos não seguir, aperfeiçoar ou dar continuidade aos atos já realizados, mas não apagá-los de nossa existência.

Diante daquele que vive no “eu... não sou... Eu faço... e dou...” (Lc 18, 11-12), Jesus aprova e justifica o cobrador de impostos que apenas suplica: “Meu Deus, tende piedade de mim, que sou pecador” (Lc 18,13). É evidente que diante dessa súplica há o desejo de crescimento. Aquele homem sabia de suas limitações, mas colocava-as diante de Deus para que ele, que tudo vê e pode, desse a ele um rumo segundo a sua vontade.

Essa realidade apresenta o fato de que Deus é uma realidade de esperança, que olha não somente para o passado, mas para o esforço humano de querer crescer, do desejo de querer acertar demonstrado pela múltipla caça à felicidade, muitas vezes distorcida pelos nossos falhos sentimentos. O passado é, sim, uma dimensão constitutiva do homem, mas não sua única realidade constitutiva. Como reflexo da ação divina, o homem é construído pelo seu passado, afirmando-o no presente, à luz das esperanças contempladas no futuro.

Maria é testemunha do lançar-se humano diante da vontade divina. Suas condições físicas, históricas e sociais poderiam impedi-la de aceitar aquela proposta de geração do divino na humanidade em que vivia, fatos lógica e materialmente impossíveis. Aquele “eis-me aqui” apresenta o necessário abandonar-se humano diante do mistério providencial de Deus.

Que nós também possamos nos tornar também homens dialéticos, homens de futuro, que sabem colocar sua esperança em um amanhã que ele mesmo, à luz da proposta evangélica, pode construir. Esse projetar-se em um fim determinado por nós mesmos não pode ser realizado sem esforço, sacrifício e perseverança na fé.

Entretanto, no fim de tudo, quando aquele futuro tornar-se hoje, podemos não construir aquele fim que planejamos, mas reafirmaremos as palavras do Apóstolo: “Combati o bom combate, terminei a corrida, conservei a fé” (2 Tm 4, 7).

Uma fé constante

Diante de conflitos pessoais ou sociais, nos perguntamos se Deus não está vendo essas realidades. Onde ele estaria que não nos ajuda e mostra-nos logo uma solução para tais problemas, já que ele tem o poder de curar toda enfermidade e organizar toda espécie de confusão. O fato é que ele pode, sim, dá um basta em todas as dificuldades que enfrentamos, mas não o quer no nosso tempo.

Estamos na sociedade do consumo, do “pagou-levou”, da rapidez nas compras, da comida pronta e dos “objetos” descartáveis, humanos ou não. Essa mesma compreensão é projetada também em Deus. Queremos que ele também seja à nossa imagem e semelhança, atenda às nossas necessidades de forma imediata e solucione os nossos conflitos instantaneamente.

A própria oração e muitos rituais são transformados em fórmulas mágicas que, quando utilizados, têm a função de conquistar certos pedidos. Fato é que, mesmo justos e bons, tais necessidades não podem ser conquistadas de Deus por uma troca material. Deus não quer as nossas riquezas, as nossas habilidades ou virtudes, ele não se deixa persuadir por eles, mas quer o nosso espírito de sacrifício e uma fé perseverante.

A vitória sobre nossas dificuldades só pode ser construída a partir do momento em que temos a consciência de que ela não virá sem sacrifício. Nada que temos é dado de forma gratuita, tudo que existe possui um valor intrínseco, seja na esfera material, intelectual, psicológica ou espiritual. Do mesmo modo, os bens que desejamos receber também devem ser acompanhados por um espírito de luta, de constante e gradativo esforço por sua realização.

O relato do livro do Êxodo da vitória do povo de Israel sobre os amalecitas (cf. Ex 17, 11ss) apresenta a postura de Moisés que pede, insistentemente, a Deus o sucesso de seu povo. A atitude perseverante daquele homem mostrou que seu pedido não era somente humano, mas um ato de fé, no lançar-se diante de um mistério que nem mesmo ele compreendia naquele momento.

Do mesmo modo São Paulo dá continuidade a esse ato de fé em Deus quando pede a Timóteo: “[...] permanece firme naquilo que aprendeste e aceitaste como verdade” (2 Tm 3, 14). A promessa de salvação feita por Deus sempre vêm, mesmo que não seja no momento em que desejamos ou esperamos. O ato de esperar, na oração, pela realização dessa promessa já indica que o homem deve deixar Deus ser Deus, aceitando o seu tempo e a sua vontade.

Nesse caminho, a palavra de Deus é a base na qual será firmada os passos daqueles que querem a superação de suas necessidades. Ela que é fonte de vida, porque voz divina, deve ser utilizada para o crescimento daquele que quer permanecer no caminho que leva a felicidade plena.

Assim, continua o Apóstolo: “eu te peço com insistência: proclama a palavra, insiste oportuna e inoportunamente, argumenta, repreende, aconselha, com toda a paciência e doutrina” (2 Tm 4, 2). A palavra de Deus não é uma espécie de livro que nós devemos ler somente quando estamos tristes ou, pelo contrário, apenas alegres. Mas é fonte permanente de vida, portanto, deve guiar todas as nossas atitudes, sempre.

Uma oração insistente e constante, fundada na Palavra, é que torna possível a realização das nossas necessidades e a superação dos problemas que atingem tanto a nós quando à nossa comunidade. Deus prova a nossa fé, testa-nos para ver se estamos dignos de nos aproximar de sua majestade e gozar de sua felicidade, ele faz “justiça os seus escolhidos, que dia e noite gritam por ele” (Lc 18, 7), basta que a mereçamos.

Maria é para nós o exemplo daquela que conquistou a promessa feita pelo Pai. Ela não foi beneficiada de forma gratuita, mas soube gerar aquele que foi o Filho do homem no silêncio e na simplicidade de sua vida. Porque esperou a manifestação de Deus, Maria soube conformar-se plenamente aos desejos do Senhor, gerando-o em seu ventre.

Possamos também adquirir essa paciência e constância de fé, tão necessárias ao nosso crescimento em busca da realização das promessas feitas por Deus em Cristo. Deixemos que Deus seja Deus, peçamos somente que aprendamos a reconhecer no meio do mundo a Sua mão providencial que está sempre a nos guardar e guiar rumo à manifestação da glória eterna planejada para o homem: a ressurreição.

Gratidão: um sim à humanidade

Estamos vivendo na sociedade do acúmulo. O capitalismo e a sua estrutura envolvente distorcem, de forma alarmante, a idéia de que somos seres continuamente insatisfeitos. A essa tese vem inserida a compreensão de que nada do que temos nos dará satisfação, precisamos sempre de mais.

Isso justifica as necessidades do mercado que se organiza em uma economia que deve estar em constante ascensão. Essa exigência de crescimento requer um mercado consumidor que esteja sempre insatisfeito com o que possuem. A isso, soma-se o fato de que os produtos passam a ganhar prazos de validade – sejam perecíveis ou não.

Bens que perdem o valor em pouco mais de um ano diante de outros mais modernos e com mais recursos, a beleza que se transforma sob a perspectiva de interesses individuais, ações que perdem o seu sentido de ser em relação a outras mais atraentes... está formada a ilusão da moda.

Essa postura inconstante diante das coisas e das pessoas revela não somente que somos seres insatisfeitos, mas que somos homens não gratos, mal agradecidos pelo que temos e somos. Queremos um mundo que não temos e esquecemos tudo o que possuímos. Esse querer sempre mais revela que estamos sempre fugindo de nossa realidade, que não sabemos abraçá-la e trabalhar com os fatos que estão diante de nós.

Valores como perseverança, disciplina, simplicidade são totalmente esquecidos diante de um comportamento inconstante de agir que está sempre à procura do que é menos doloroso, mais belo ou mais fácil.

A postura tanto de Naamã (cf. 2 Rs 5, 15), o sírio, quanto do samaritano (Lc 17, 15-16) que voltam para agradecer ao Senhor pela cura recebida é reflexo de homens que souberam viver suas existências momento por momento, degrau por degrau. Eles poderiam pedir ao Senhor mais graças e bênçãos, mas eles souberam aproveitar aquela oportunidade e permanecerem agradecidos diante daquela realidade.

Querer algo que não está ao nosso alcance também reflete a nossa dificuldade em encarar a nossa vida como realidade humana, como conjunto de dificuldades, superações, alegrias e tristezas, dores e prazeres, vitórias e fracassos. Se vivermos em uma constante busca pelo que é menos doloroso, mais fácil e mais belo, estaremos entrando em uma busca contínua, infinita, pelo que nunca conquistaremos de forma plena.

O apóstolo Paulo parece ter compreendido bem a proposta de gratidão ao Senhor pelo que ele recebeu de suas mãos. Quando escreve a segunda carta a Timóteo afirma: “Por ele eu estou sofrendo até as algemas, como se fosse um malfeitor; mas a palavra de Deus não está algemada” (2, 9). O apóstolo sabia que o sofrimento também era a via que o levaria para uma maior configuração a Cristo, que daria sentido a sua vida.

Acrescenta ainda que “se com ele morremos, com ele viveremos. Se com ele ficamos firmes, com ele reinaremos” (1, 11s). Seguir os passos de Jesus é a via para a conquista de um sentido maior para a nossa vida, é a certeza para a construção de uma verdadeira humanidade, que se firma diante do que temos e somos, não do que queremos possuir.

A jovem de Nazaré soube bem o que era o sentimento de gratidão ao Senhor seu Deus. Diante da cruz ela poderia questionar onde estava a promessa de salvação anunciada pelo anjo, indagar se tudo aquilo terminaria com a morte escandalosa de seu filho. Maria soube aceitar, silenciar diante do mistério do sofrimento, próprio e de Jesus. Porém, porque soube esperar, ela contemplou a salvação.

Que nós também possamos construir em nosso ser esse mesmo sentimento de gratidão ao Senhor que sustentou a vida a Naamã e do samaritano, que deu sentido a missão de Paulo e santificou plenamente Maria. Sem acolher a Palavra pronunciada por Deus Pai, continuaremos sempre a buscar uma razão para a nossa vida sempre fora de nossa realidade. Que a verdadeira insatisfação possa surgir em nossa existência: a de buscar constantemente a humanidade que está dentro de nós e espera por ser abraçada plenamente.

O servo homem


Neste dia 03 de outubro todo o Brasil vai realizar suas eleições para os cargos de deputados estaduais e federais, senadores, governadores e presidente da República. O processo democrático, por mais críticas que possa receber, mostra-se como o caminho de uma participação do povo nas decisões políticas de seus interesses.

O problema surge quando a estrutura representativa, inserida no regime da democracia em nosso país, realiza uma inversão de valores. Aquele que deveria estar representando o povo torna-se cabeça de interesses particulares ou de uma pequena elite político-econômica. O servo torna-se senhor.

Isso é bem claro em nossa realidade. Os homens que recebem mais votos de confiança são os que são provenientes de uma estrutura política já alicerçada em nosso contexto, representam famílias já conhecidas, poderes já sedimentados, ideais já cristalizados. Os nossos políticos vão, aos poucos, se transformando em pequenos deuses, ídolos que devem ser eleitos pela imagem que possuem.

Nesse ínterim, as propostas políticas são as que menos importam no processo eleitoral. Vota-se pelo grupo político que rodeia, pelo apoio que recebem e, pior ainda, pelas obras que já foram realizadas.

O filósofo político italiano Noberto Bobbio afirmou que os limites de um processo democrático está no fato de que o jogo entre poder e direito são invertidos. O poder político, que deveria representar efetivamente o direito do povo, recebe um domínio tão amplo que acaba arrogando-se e esquecendo seu papel fundamental: o de representar. Os direitos dos homens tornam-se joguete em uma estrutura sócio-política articulada por um poder isolado.

Jesus nos apresenta a figura do servo que doa-se integralmente pela realidade que lhe foi confiada (cf. Lc 17, 10). Só o ato de servir já apresenta, em si, a sua riqueza. Estamos construindo algo de concreto para a felicidade de outras pessoas, somos motivo de alegria para outros homens.

Mais excelente ainda é a postura daquele que serve sem esperar nada em troca, não pelo fato de ser o melhor, mas por causa de que esse tem menos chance de se decepcionar com os que o rodeiam. Colocando uma esperança demasiada nos homens, tornamos-lhes ídolos, imagem que será sempre quebrada pela humanidade que a cerca.

Como pessoas que buscam um crescimento pessoal, político e social, portanto, humano, devemos nos compreender dentro de uma estrutura democrática que é fundamentada pelo serviço. Ofício que deve ser reconhecido como um bem em si mesmo, não pelo endeusamento daquele que trabalha, qualquer que seja a função.

O homem evangélico deve ser caracterizado por um contínuo estado de serviço, doação ao outro, como meio de fazer o bem a quem precisa e de autosatisfação, pelo sentimento de utilidade humana. Reconhecer-se servo é aceitar a nossa condição de criaturas, que fomos construídos para a busca de um bem, que só o é efetivamente quando comunitário.

A jovem de Nazaré é o exemplo de criatura que se fez serva, não exigindo nada em troca por isso. Sua missão, por grandiosa que fosse, não foi reconhecida por recompensas imediatas e materiais. A conquista de Maria foi de sentido, ela conseguiu compreender o significado de sua existência, porque se fez criatura. Ela foi feliz, portanto, porque se fez serva.

Que nós possamos nos compreender em uma comunidade de servos, de criaturas que devem buscar o bem mútuo, por isso lutam pela felicidade comum. Aprendamos também a ver nos homens que vão nos representar a possibilidade de líderes-servos, à exemplo de Nosso Senhor. Por meio do serviço, a vontade de Deus se realiza em nossa realidade e, como Cristo, habita entre nós.

O grande abismo

As eleições são consideradas a grande festa da democracia. O povo, a partir de um pequeno gesto torna-se capaz de eleger aqueles que nortearão as ações políticas do país por um considerável período de tempo. Entretanto, o próprio termo democracia, que significa governo do povo, nesse mesmo processo, pode ser questionado.

Será mesmo que estamos elegendo homens que nos representarão nos espaços de discussão política? Eles defenderão a causa do povo que representam? Estão mesmo destinados a deixar o seu tempo e o seu bem estar para doar-se à causa de pessoas que nunca viram na vida ou para lutar por seus direitos?

O sociólogo Boaventura de Souza Santos afirma que vivemos em uma democracia que não é democrática. Ele critica a postura de representantes que não representam o povo. Questiona a ação de legisladores que não legislam e de juízes que não são justos. Por isso afirma: “Precisamos democratizar a democracia”. Precisamos de pessoas que estejam interessadas no homem e nos seus direitos para a administração da nação.

Santo Agostinho apresenta esses problemas com a imagem dos pastores que apascentam a si mesmos. Suas funções perdem o sentido por que deixam de ser um serviço ao povo para defender um benefício particular. Em uma luta irreal pela sobrevivência, queremos defender o nosso bem estar e esquecemos que existem pessoas que estão a padecer por causa disso. O que é suficiente ou sobra em um é sinal de que está faltando em outros.

A figura evangélica do rico que pede a Moisés uma ajuda para que o pobre Lázaro saciasse a sua sede, e que lhe é negada (cf. Lc 16, 24ss), apresenta a conseqüência de quem se distancia do outro para a busca de seu próprio bem estar. Havia, de fato, um “grande abismo” (Lc 16, 26) entre o pobre e o rico, antes e depois da morte. O primeiro era motivado pelo rico que negava ao outro os bens que possuía em excesso, o segundo foi também motivado por esse, só que acabando sua vida só, sentiu a necessidade de saciar-se com a presença do outro, que lhe estava sendo negada por sua opção inicial.

O filósofo alemão, ainda vivo, Jürgen Habermas afirma que em uma sociedade que esse tipo de características são marcantes nos seus cidadãos, a saída necessária se encontra na inclusão do outro nas relações sociais. Saber que minha vida não se desenvolve de forma isolada, que precisamos do outro para o nosso crescimento humano, ético e político, deve ser a compreensão mais humana diante dessa problemática.

Faz-se necessário considerar o outro como participante necessário dos processos de organização social. Não podemos somente “proteger” quem mais precisa, “defender” o direito dos necessitamos, “representar” aqueles que têm menos voz. O que se faz necessário é deixar que eles participem do processo de organização política, deixar que eles falem a suas necessidades e suas propostas de superação desses conflitos.

É realizar o que Habermas denominou de agir comunicativo, onde as interações sociais se realizam quando todos os membros da comunidade têm o mesmo direito de expressão de opinião e sugestões políticas.

Que nós também possamos superar a criação desse abismo social que se forma gradativamente em nossas comunidades. Para isso é preciso compreender que vivemos em sociedade, temos um pacto de proteção mútua, à exemplo do corpo, onde se um adoece todos os outros membros também são prejudicados. Deixar que todos os outros participem efetivamente da organização político-social de nosso contexto é o caminho mais curto para diminuir esse abismo humano que nossa individualidade irracional cria.

Maria é o maior exemplo desse despojamento em favor do outro. Ela soube deixar que sua vida fosse permeada por uma ação que contribuiria para a salvação de todos os homens. A jovem de Nazaré foi capaz de negar-se a si mesma para ajudar a humanidade a crescer, soube deixar de lado sua individualidade para sentir-se mais humana afirmando-se participante de uma comum-unidade.

Afirmando a comunidade humana, ela afirma o homem em si, com todo o seu valor e sua potencialidade. Afirmando o valor do homem, Maria consegue gerar aquele que foi, da humanidade, a plenitude, a perfeição.

Deus, o único fim

Estamos na sociedade dos planejamentos, dos projetos, das metas e dos prazos a serem atingidos e cumpridos. Tudo passa a ser medido pelo grau de eficiência das ações. Buscamos uma qualidade em todas as nossas atividades. Queremos colocar todas as realidades que nos envolvem dentro do plano lógico da eficácia, mas esquecemos de trabalhar com o que é básico em nossa existência: a vida.

Max Weber, sociólogo alemão, identificou que a sociedade moderna entrou em um processo de burocratização. Tudo passa a ser medido, quantificado e definido segundo valores objetivos. Essa realidade não é negativa, todos precisamos de certa organização em nossas atividades, cumprir objetivos, estabelecer metas, construir sonhos para o que buscamos de mais essencial em nossa existência.

O problema do processo de burocratização da vida, estudado por Weber, estava no fato de que o homem desaparecia nesse processo. A vida estava se tornando tão racional e objetiva que deixava ser vida, perdendo a sua dimensão complexa, ilógica, transcendental.

Se perguntássemos a qualquer um de nossos conhecidos quais os objetivos de sua vida e depois fôssemos insistindo questionado o porquê de cada um deles, mais cedo ou mais tarde a palavra felicidade, ou alguma equivalente a ela, surgiria. O homem tem sonhos e metas porque quer ser feliz, precisa de uma paz interior.

O problema está no fato de que ele não consegue distinguir entre o que é fim em si mesmo e quais serão os meios para conseguirmos essa meta definitiva. Nesse espaço é que o emprego, os bens materiais, a família e os amigos tornam-se uma meta final. Esses, que deveriam fazer com que o homem fosse feliz, tornam-se o seu único objetivo.

Entretanto, esquecemos que tudo isso é fácil de ser conquistado, basta atenção no objetivo e o esforço necessário para construí-lo. Por outro lado, se esses objetivos são considerados como fim em si mesmo, logo que forem realizados, fará com que o homem perca o sentido de sua caminhada. Isso porque estaria havendo uma troca de meios por fins.

A felicidade verdadeira que o homem busca é a eterna, ou seja, a que é plena, a que dura para sempre, de forma perfeita. Essa não pode ser construída se não a temos, primeiramente, como o objetivo primeiro de nossa vida, por meio do qual todos os outros serão instrumentos de sua realização.

É nesse sentido que Jesus pede de nós uma decisão firme e definitiva para a nossa vida quando afirma que não podemos servir a dois senhores (Lc 16, 13). Se colocamos a riqueza, o nosso emprego ou as pessoas que estão próximas a nós como único bem que podemos possuir ou já possuímos estamos perdendo o norte de nossa vida já que essas metas podem ser facilmente conquistadas e perdidas.

Deus é o único fim de nossas vidas. Quando conformamos todas as nossas ações à sua vontade estamos aprendendo a buscar a felicidade definitiva de forma mais decisiva. Os bens materiais, nossa posição social e as pessoas que estão próximas a nós devem ser instrumentos para esse fim último: a felicidade.

Que nós possamos aprender com Maria o sentido de uma decisão plena pela proposta de encarnação do Verbo de Deus. Ela não soube somente deixar ser instrumento de Deus, mas também optou por essa proposta dando um sim definitivo. Se a jovem de Nazaré ainda estivesse dividida entre a palavra de Deus e a sua própria vontade, conseqüentemente Jesus Cristo não teria nascido.

Vejamos em Maria a possibilidade de uma decisão firme e sólida para a construção de nossa felicidade. Deixar-se dividir entre a mensagem de Deus e as propostas humanas de felicidade é arriscar trocar o certo pelo duvidoso, o eterno pelo contingente, a vida plena pelos bens que se esvaem na primeira tempestade.

O mistério do outro


A imagem bíblica da construção de um bezerro de metal fundido feito pelo povo que estava vagando pelo deserto (cf. Ex 32, 8) é reflexo de uma postura que repetimos constantemente. Temos a fantástica capacidade de criar, em um piscar de olhos, deuses ou demônios.

Ao olhar para os outros, queremos logo lançar conceitos prévios sobre eles, colocamos todo o nosso “ouro”: conhecimentos, habilidades e pré-juízos, para montar uma imagem positiva ou negativa das pessoas. Ele passa a não ter mais um valor em si, mas ser somente o reflexo de nossas idéias e cogitações.

Isso geralmente ocorre porque temos um raciocínio tão lógico perante o outro que acabamos por esquecer que estamos nos relacionado com homens, com histórias de vida, com seres tão complexos e que não podem ser compreendidos por um julgamento limitado. Esquecemos que por trás de cada ação, mínima que seja, há uma estrutura social, histórica, econômica e biológica envolvente, não existindo ações isoladas ou fonte de um querer independente.

O problema do julgamento amplia-se porque está associado à condenações: “Ele deve ser punido”, “Aquele vai para o inferno”, “Este terá o castigo que merece”. Gostamos de nos posicionar acima da pessoa que erra para proclamar a sua falha, como se fôssemos capazes de explicar também a situação em que ela se encontrava para praticar tal equívoco.

São Paulo compreendeu bem a proposta de Cristo de salvação do homem por meio de seu pecado. Ele, na carta a Timóteo, escreve que seu perdão foi dado por que ele “agia sem saber, longe da fé” (1 Tm 1, 13). O equívoco humano, pode ser realizado por ignorância, por situações biológicas, psicológicas ou espirituais, realidades que nossa racionalidade não pode perscrutar de forma tão fácil e imediata.

É diante disso que o Apóstolo proclama: “Jesus Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores” (1 Tm 1, 15) e o próprio Senhor, pelas palavras de Lucas, afirma que “haverá no céu mais alegria por um pecador que se converte do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão” (Lc 15, 7). Deus não está a nos condenar constantemente porque ele vai além de uma correção unidirecional, “bateu-levou”, ele sabe nos ver de forma mais ampla e localiza nossas ações segundo os seus critérios de salvação.

O exemplo do filho pródigo que se levanta para pedir perdão ao seu pai pelo erro de ter se distanciado de sua proteção, seguido pela acolhida amorosa peterna (Lc 15, 21ss) é o reflexo de um Pai que sabe ver a inexperiência de seus filhos e abraça-os incondicionalmente, perdoando-os.

Saber ter um olhar mais misericordioso pelo nosso irmão que é limitado em algum aspecto é saber que suas ações nem sempre são de sua inteira responsabilidade, há sempre algo que ultrapassa nosso entendimento. Querer forçar a modificação uma personalidade seria agir de forma desumana pelo fato de estarmos diante de uma série de estruturas que envolvem tal ação.
Mas quando vamos saber que o outro erra porque quer ou quando ele foi vítima da complexidade de sua existência? Nunca. E nem precisamos sabê-lo, porque não cabe a nós entender uma realidade que é produto de um amor Divino, e que, por si mesmo, é mistério. Diante do homem, portanto, o melhor que podemos fazer é calar. É deixar que Aquele que o criou, tome conta de sua obra e a reorganize quando necessário.

Que Maria, a mulher do silêncio, nos ajude a construir uma postura menos crítica e arbitrária em relação ao homem. Ela, diante da cruz, poderia se revoltar pela injustiça que estava sendo cometida contra o seu filho, o Enviado de Deus. Entretanto, ela manteve-se em silêncio, perante o Cristo que também não condenava os seus algozes.

Assim como Maria, que também nós possamos nos curvar diante do mistério do outro, que reflete a presença de Deus em suas múltiplas manifestações. Diante do homem, temos também que assumir a nossa condição de criaturas, que sofrem as mesmas adversidades e limitações, até os mesmos erros se tivéssemos em seu lugar.