domingo, 26 de julho de 2009

Somos um corpo




Há um só corpo e um só Espírito, assim como a vocação de vocês os chamou a uma esperança: há um só Senhor, uma só fé, um só batismo.” (Ef 4, 4-5)

O homem, estando no ápice de toda a criação, ganha algo que lhe é peculiar: o sopro divino. Essa participação, ainda que imperfeita, junto ao Deus criador, nos faz participar também de Sua unidade. O mesmo Deus que cria é aquele que atrai todos para si, para sermos um com Ele. É nesse sentido que se manifesta a busca de todos os homens pela felicidade, uma única Felicidade.

Entretanto, o pensamento humano, a seguir uma estrutura filosófica que deixa Deus de lado e toma o pensamento racional como centro de toda a ação moral, cria uma relação social voltada para a ação dos indivíduos tomados de forma isolada, isto é, um individualismo generalizado.

Esse esquecimento de um Deus que dá ao homem um norte para a sua vida, isto é, um caminho único para seguir, cria uma infinidade de “éticas”, gerando uma diversidade de ações. O problema surge exatamente quando essa diversidade de “morais” começa a se chocar, quando os meus princípios colidem com os princípios do outro, quando minha busca pela felicidade gera a negação do outro.

A idéia de uma comunidade orgânica proposta por São Paulo viria solucionar esse choque de princípios e valores. A sociedade funcionaria semelhante a um corpo, onde cada órgão trabalharia para o bem comum. Cada um teria a consciência de que a diversidade de ações e habilidades tem como objetivo um fim único, a Felicidade Humana.

Diz o Apóstolo: “De fato, tal como num só corpo temos muitos membros e nem todos os membros têm a mesma função, assim nós, embora sendo muitos, formamos em Cristo um só corpo, e somos, cada um por sua parte, membros uns dos outros” (Rm 12, 13). Cada indivíduo trabalharia, com suas singulares capacidades, para o bem do todo, através de um eixo norteador, uma realidade Perfeita que nos uniria.

Essa ação, mesmo diversa, para a felicidade comum levaria a todos para um mesmo fim. A mudança está exatamente no fato de que não haveria mais uma busca isolada por felicidades distintas, mas uma articulação de diversas contribuições individuais, de vários modos, para uma única realidade, que nós chamamos de Deus.

Nossa Igreja compreende bem essa diversidade de carismas quando reconhece a santidade de pessoas que procuraram Deus de diversos modos: papas, soldados, irmãos consagrados e mesmo leigos. Cada um enriquece a Igreja, Corpo de Cristo, quando nos ensina que o caminho para a beatitude pode ser percorrido de vários modos.

Foi exatamente esse sentimento de unidade que saciou a fome do povo que estava diante de Jesus. Foi o sentimento de unidade e de organização que alimentou todas aquelas pessoas e alimenta a nós hoje. Somente a esperança em um único Deus pode, concretamente, saciar a nossa busca por um sentido de vida. Não são os pães comprados pelos homens que vão dar a nós uma felicidade, como bem disse o Senhor: “Não foi Moisés quem vos deu o pão do céu, mas é meu Pai que vos dá o verdadeiro pão do céu” (Jo 6, 32).

É somente a esperança em uma realidade Perfeita, que unifica todos em Si, formando-nos um só corpo, que pode satisfazer nossa procura por felicidade. Mesmo considerando-nos limitados, somos “centelhas do Divino”. E é somente por essa fragmentação, a se tornar comunhão, que podemos tornar real a presença de Deus em nossa sociedade.

[Artigo Publicado no Jornal "A Folha", da Diocese de Caicó, ANO XXI, Nº 166, 25/07/2009]

Cristo: o mestre perfeito


Quando o homem por suas capacidades físicas e intelectuais acha-se tão suficiente ao ponto de querer negar uma realidade perfeita que lhe esteja superior, ele retoma e atualiza a atitude de nossos primeiros pais: o pecado original. A negação de uma realidade mais ampla e complexa, que nossos sentidos ainda não podem tocar de forma plena é a negação do próprio Absoluto, Deus, Aquele que consegue “ver tudo”.

A sociedade, a partir do período moderno, relativiza o valor de Deus e de uma ética religiosa colocando sobre eles a técnica. O homem passa a querer abraçar toda a realidade que o cerca pela aplicação de métodos que tem a pretensão de compreender a realidade completamente, dividindo e verificando todas as coisas. O problema é iniciado quando essa técnica torna-se absoluta. O homem passa a utilizá-la de forma tão mecânica e irrefletida que a torna soberana. A técnica torna-se senhora de seus próprios criadores.

Martin Heidegger (1889-1976) (leia-se Martin Raideger), filósofo alemão, propõe uma “serenidade para com as coisas” de modo a relativizar o valor dos métodos, reduzindo-o a sua função originária. O homem é chamado a ser senhor de suas criações, necessita de saber que a técnica e seus resultados são meios para o bem do homem, de todos os homens. Se há algum problema social, mesmo quando o progresso científico está indo bem, é por que algo está errado, os meios estão sendo utilizados de forma equivocada. É preciso refletir, considerar o valor da pessoa humana como fim último de todas as ações sociais, políticas e tecnológicas.

O profeta Jeremias dá um puxão de orelha em nós, sacerdotes, quer batismais ou ordenados, quando nos achamos responsáveis ou donos das obras divinas e do Corpo que Cristo nos deixou, que é a Igreja. Quando nos consideramos possuidores dos bens divinos e de seu reflexo nas obras concretas, negamos Deus e transferimos a responsabilidade das ações para as nossas mãos. Elas, como os sentidos, que são falhos, tenderá a ser perecível transformando as propostas da Providência Divina em técnicas meramente humanas, falíveis por si só.

O profeta ameaça: “Ai dos pastores que espalham e extraviam as ovelhas do meu rebanho...” (23, 1). Dentre as limitações humanas, chegando a pretensão de acharmos autosuficientes, Deus promete pela boca de Jeremias: “...eu farei brotar para Davi um broto justo. Ele reinará como verdadeiro rei e será sábio pondo em prática o direito e a justiça no país” (23, 5), esse é Jesus Cristo, perfeito Pastor, a plenitude do modelo de ser e viver. Ele sim, mesmo humano, nas palavras do Apóstolo, “é a nossa paz” (Ef 2, 14). Nessa proposta, todo aquele que se afirmar dono do rebanho ou o pleno responsável pelas ações humanas, receberá a mesma repreensão, uma censura Providencial.

Nosso Senhor, ao perceber a atitude dos apóstolos (cf. Mc 6, 30) quando estes voltaram de suas missões, levou-os à compreensão de que aquelas ações não eram humanas, mas Divina. Os discípulos e até mesmo o Cristo eram instrumentos que deveriam levar todos para Deus, “num só Espírito” (Ef 2, 14).

O convite de Cristo para que eles fossem, junto com Ele para um lugar deserto (cf. Mc 6, 31), não foi para que se afastassem das pessoas, mas para que houvesse um verdadeiro esvaziamento das pretensões humanas e um entregar-se aos planos Divinos providenciais e perfeitos.

Deus, em Cristo, plenamente humano, por isso perfeitamente divino, também nos convida a essa kénosis, a um esvaziamento de nossas pretensões de querer ver Deus ainda nesta vida, de querer “agarrá-lo” com nossas mãos e demais sentidos. Ele nos quer como instrumentos, como meios não absolutos, que levam todos para aquele que é Plenamente Divino, por isso, imaterial.
[Artigo Publicado no Jornal "A Folha", da Diocese de Caicó, ANO XXI, Nº 165, 18/07/2009]

domingo, 12 de julho de 2009

Deus nos quer livres



Todo homem é chamado a um desenvolvimento, seja moral, psicológico, corporal ou espiritual. Porém, esse progresso não se dá de forma definitiva, em um tempo específico e determinado. Essa ascensão do indivíduo em busca de uma Perfeição, que a teologia bem conceitua como santidade, só pode ocorrer de forma gradativa, livre e autônoma. Entretanto, atualmente muito se fala e pouco se compreende dos conceitos de liberdade ou autonomia.

O conceito de autonomia vem do grego, significa uma lei (nomos) que é dada a si mesmo (autos). O homem é chamado a agir de forma autônoma criando leis que vão regular a sua vida. Não se fala aqui, no entanto, de uma relativização das regras sociais em virtude dos desejos individuais.
As regras, normas e limites que são postas à nossa frente devem ser abraçadas por nós. Devemos concretamente torná-las parte de nossa moral, não como uma lei que vem de fora e nos obriga a algo que eu não quero, mas como uma proposta de caminho que já foi pensada e seu valor reconhecido.

Todavia, nenhuma regra deve ser tomada como inquestionável, isso acabaria com toda a proposta de crescimento que é marca do próprio homem e que reflete em seu contexto. Para que haja, portanto, uma ação autônoma, não devemos buscar novas regras de vida para seguir, mas a continuação das que já existem, compreendendo-as ou questionando-as para o seu aperfeiçoamento.

Santo Agostinho, filósofo e teólogo do século IV, afirmou que para que o homem pudesse buscar a Suprema Perfeição com liberdade, ele recebera o livre-arbítrio. Deus não queria que todos se aproximassem dele como algo mecânico, mas por livre iniciativa das próprias pessoas. É só nesse sentido que pode haver o conceito de pecado ou, em termos seculares, de erro ou crime, o indivíduo só pode ser punido por algo se ele agiu em liberdade, “porque quis”.

Quando o Senhor envia os seus discípulos, Ele não quer uma conversão imposta, mas uma aceitação livre das pessoas. É, portanto, o anúncio a peça chave da evangelização. A demonstração por meios de palavras e pelo próprio testemunho de vida deve ser a peça chave para a proposta de crescimento pessoal e social.

Nesse sentido, não seria Deus que condenaria os homens pelos seus erros. O “calor” físico e a “dor” concreta dos infernos, da distância completa da Perfeição seria conseqüência lógica de nossa decisão livre da negação do Divino. Por isso é que Jesus ordena a seus discípulos: “sacudi o pó de debaixo de vossos pés em testemunho contra eles” (Mc 6, 11), para os que não aceitam o anúncio mesmo tendo um testemunho concreto de vida.

Para que nosso modo de agir seja perfeito, e possamos nos aproximar de forma plena de Deus, Ele mesmo nos dá um exemplo a seguir: Cristo, a Divindade Encarnada. O apóstolo Paulo bem ilustra esse Dom-Testemunho quando afirma que Deus nos dá “a conhecer o mistério de sua vontade” (Ef 1, 9) em Jesus Cristo. É somente o Senhor que deve encabeçar (cf. Ef 1, 10), isto é, ser princípio de todas as nossas ações morais, pois Ele nos deu o testemunho perfeito de ação.

Que saibamos anunciar primeiramente à “casa de Israel”, isto é, àqueles que estão próximos de nós, o modo de vida ensinado por Cristo através de nosso próprio testemunho de ser e agir. Possamos levá-Lo de forma simples (cf. Mc 6, 8-9), vazios de nossos preconceitos ou categorias que somente reduziriam a proposta de Deus.

Não esperemos, entretanto, ser aceitos ou compreendidos, estamos sempre a nos relacionar com pessoas que tem a liberdade de aceitar ou não a proposta que Cristo fala através de nós. Aprendamos a esperar no Senhor, Ele que sabe agir de formas naturais e sobrenaturais para atrair todos para Si.

[Artigo Publicado no Jornal "A Folha", da Diocese de Caicó, ANO XXI, Nº 164, 11/07/2009]

Sofrimento humano: um sim à vida



Somos seres que, ao mesmo tempo que criamos, somos constituídos pela nossa própria cultura. É evidente que o desenvolvimento técnico e científico contribui muito na vida de muitos, mas por outro lado cria uma acomodação e uma aversão às dificuldades.

Assim como os animais, o homem sempre é levado a fugir da dor e buscar o seu bem estar sempre à procura de segurança para sua vida. A questão problema se inicia quando essa busca se torna absoluta e incondicional. O mais alarmante e perigoso é quando essa corrida pelo bem individua significa o esquecimento e a negação do outro.

Muitas vezes, só lutamos e defendemos certos ideais ou conceitos como solidariedade ou “direitos comuns” quando “eu” serei beneficiado. Não pensamos no bem comum, mesmo que ele signifique o meu sacrifício. É exatamente aqui que o conflito inicia-se; O homem, nessa cultura de rapidez, desenvolvimento técnico e industrial e eficiência nas produções, esquece de uma dimensão central que foi realizada por Jesus e seu resultado foi prometido a todos que o seguissem: O Espírito da Cruz como caminho para a Ressurreição.

Buscamos, por exemplo, a Igreja, o conselho de um padre ou amigo sempre para fugir de uma dor. Nossa relação com o sofrimento é sempre de aversão a ele e, por consequência, de fuga. É esquecido o fato de que os problemas são realidades presentes em nossas vidas e a fuga deles é uma negação de nosso próprio ser.

Todavia, não se está a propor uma filosofia conformista no aceitar sem nenhuma reação o sofrimento. Entretanto, se a dor é fato constante na vida do homem, abraça-lo significa aproximar-se da própria vida. Entra aqui a uma reelaboração do próprio sofrimento humano, transformando-o em possibilidade de crescimento e superação. Ou seja, no enfrentamento e superação das aflições e fores (saindo marcados ou não) obtemos sempre uma lição para a nossa história.

Assim como os conterrâneos de Jesus, procuramos uma salvação sempre fora de nós, a negar aquilo que faz parte de nossa realidade (cf. Mc 6, 3) como a dor os outros problemas. Somos, nas palavras do profeta Ezequiel: “insolentes e de coração endurecido (2, 3) quando não nos deixamos moldar por uma realidade que é dinâmica, que possui valores, mas também conflitos. Esses devem ser superados, e não esquecidos.

São Paulo parece ter compreendido bem e aceitado o Espírito da Cruz proposto pelo Senhor quando afirma: “me comprazo, nas fraquezas, nos opróbrios, nas necessidades e nas perseguições, nas angústias por causa de Cristo” (2 Cor 12, 10) que é esclarecido quando diz: “pois é na fraqueza que a força manifesta o seu poder” (2 Cor 12, 9).

É somente assumindo o sofrimento como possibilidade de afirmação de nossa vida e aproximação do Cristo, morto e ressuscitado, que poderemos fugir da “rebeldia” dos filhos de Deus (cf. Ez 2, 3) e tornar presente sua promessa de perfeição em nossa existência humana.

[Artigo Publicado no Jornal "A Folha", da Diocese de Caicó, ANO XXI, Nº 163, 04/07/2009]