quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Ele nasce

Quais são as notícias que vemos e ouvimos no período de fim de ano? “Preços caem”, “Vendas aumentam”, “Os brasileiros compram mais”, “É tempo de dar e receber presentes”...
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Quem vai a uma festa de aniversário na casa de alguém e não cumprimenta aquele que é festejado? Essa postura, socialmente inesquecível, é muitas vezes deixada de lado quando estamos falando do menino Deus. Sabemos que estamos festejando a grande alegria de seu nascimento, mas esquecemos de fazer uma pequena aproximação com ele.
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E por que não conseguimos fazer tal coisa? Simplesmente pelo fato de que não estamos conseguindo encontrá-lo. Vemos os festejos, as músicas, os presentes e os ornamentos da festa, mas não estamos contemplando o próprio aniversariante.
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Todas essas coisas indicam sua realeza, a grandeza daquele que é a Palavra de Deus feito homem. Porém, é esquecido que ele mesmo não quis essas riquezas. O próprio enviado de Deus nos indica o sinal de sua localidade: “Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2, 12).
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É bonito ver o menino Jesus em grandes Igrejas, magníficos presépios, rodeado de muitas luzes, é belo e fácil. Porém, é difícil compreender que ele nasceu em um lugar simples, muito pobre, deitado em um lugar indigno de seu poderio e nobreza. É mais complicado ainda saber que ele ainda continua nascendo em uma realidade como essa, que a salvação brota onde menos esperamos e a expectativa da humanidade está em realidades simples e em pequenos gestos.
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Isaías, no passado, já aclamava: “nasceu para nós um menino” (Is 9, 5). Sim, ele nasce a cada momento em que é gerado na história dos homens. E nos aponta para a possibilidade de salvação a partir de atitudes simples, humildes e puras.
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Nasce para nós um menino, surge uma nova esperança para o homem que anda na escuridão (cf. Is 9, 1). O menino é a esperança de uma vida nova, é possibilidade de renovação da humanidade que é chamada a acompanhar com os olhos e a vida a luz enviada pelo Pai.
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No entanto, essa luz não nos permite olhar muito tempo para o alto, a procurar uma riqueza nas coisas grandes, ela nos faz descer os olhos, a cabeça e quebra o nosso orgulho ensinando-nos a presença de Deus em locais que não queremos imaginá-lo. E não queremos por que já o criamos sob as nossas categorias, definições e conceitos prévios.
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O espírito do Natal do Senhor nos ensina a fazer um novo caminho, a olhar para a imagem do menino que nascem em Belém e a ter uma nova postura: ele nasceu e está lá. Ele nos ensina a descer dos nossos pedestais e assumir a nossa humanidade, nos ensinando a ser grandes por que olhamos para cima, buscando o que está nos céus, não olhando para baixo, julgando quem está, aparentemente, no chão.
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Que o espírito do menino que nasceu em Belém e nasce em nossa história nos ensine a sua proposta de felicidade, buscando, na simplicidade de nossos gestos, a grandeza da salvação. Nesse período, nos é indicado que ele pode nascer nesse ano que se inicia, trazendo-nos a alegria de uma nova vida, a esperança por novas realidades e o esforço de buscar novamente a construção de nossa humanidade.


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Para que isso ocorra, basta que digamos como Maria: “Sim, eu quero”.
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ABENÇOADO NATAL DO SENHOR,
UM ANO REALMENTE NOVO E SANTO!

É preciso renascer

“Uma virgem conceberá e dará à luz um filho”

Diante de um novo ano que se inicia, que promessas estamos fazendo? As mesmas ou outras? Estamos refazendo aquelas velhas propostas ou já as superamos e buscamos outras que nos fazem crescer? Estamos olhando para o novo ano como ano de possibilidades ou mais um que se inicia?
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Todo reinício nos dá a possibilidade de uma nova postura, de desenvolver um novo olhar, de renovar a si mesmo para viver melhor. Não é a repetição de um mesmo conjunto de ações, mas a abertura ao mistério do novo, ao mistério que a novidade traz em si
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A imagem da encarnação do menino Deus que é gerado no seio de uma virgem nos lança para a compreensão de que nem todos os atos podem corresponder às nossas expectativas. O nosso modo de ver e entender o mundo não pode ser permanentemente o mesmo: é preciso mudar.
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Isaías já prenuncia: “Saibam que Javé lhes dará um sinal: A jovem conceberá e dará à luz um filho, e o chamará pelo nome de Emanuel” (Is 7, 14). Deus é realidade dinâmica e está em constante manifestação. Ele não entra em nossas categorias ou sistematizações, nas nossas imagens de mundo ou tentativas de explicação, mas sempre está nascer onde menos esperamos. Sim, uma virgem conceberá.
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Nesse sentido, não é o homem que gera Deus e o cria à sua imagem e semelhança. Deus gera-se a si mesmo e manifesta aos homens o mistério de sua novidade: todo nascimento é possibilidade de crescimento e, portanto, transformação.
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Mesmo não gerando, o homem é chamado a dar nome a essa nova realidade (cf. Mt 1, 21), e o nome dela é caminho de salvação, Deus está conosco e nos quer juntos de si. Ele quer que o homem se afaste de todos os vícios e de suas conseqüências e busque o bem.
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A figura da criança divina que nasce em nossa humanidade, nos faz ter a esperança em um novo mundo. Deus se faz presente e mostra ao homem que sua humanidade é possível de salvação. Para isso, basta que ele olhe para essa criança com abertura, disposto a acolher a novidade que ela traz consigo.
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Não podemos continuar as nossas antigas práticas de categorização das pessoas e das coisas, ou seja, de pré-definição do que é certo ou errado, bom ou ruim, válido ou inválido, moral ou imoral. É preciso abrir-se à realidade de que todo novo é mistério a ser desvendado, descoberto gradativamente, mas não pré-definido ou pré-conceituado.
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José apresenta para nós a idéia do homem que soube abrir-se a essa novidade trazida por Deus. Como indivíduo de seu tempo, ele poderia justamente condenar Maria por adultério. Mas ele soube ouvir a voz de Deus que demonstrava que aquele fato era a manifestação do seu Espírito que tinha planos de salvação para a humanidade, e tais planos não poderia partir dos homens.
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Maria também soube estar disponível ao mistério da providência divina. Ela só pôde ser via perfeita para a encarnação de Jesus por que “não conhecia homem algum” (Lc 1, 34), por que sabia, em seu íntimo, que nenhum homem poderia fazer tal prodígio.
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Que nós também, a exemplo da família de Nazaré, possamos estar dispostos a renascer para uma nova proposta de salvação que encontra no menino Jesus a sua plenitude. Ao nascer em um local simples e de forma inusitada nos é apresentado um caminho de abertura a toda novidade que vem até nós, que nasce à nossa frente.
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Essa novidade nos ensina a dinamicidade de um Deus que se faz presente e quer que nos abramos ao seu projeto de salvação. Esse se concretiza no mistério do novo que, constantemente, nasce, cresce e ilumina nossa humanidade. Com isso, passamos a olhar, não para o que deixamos de fazer, mas para as nossas esperanças, para o menino que estamos gerando a cada sonho e a cada novo modo de ver o mundo.

É preciso esperar


Quando estamos diante de determinados conflitos políticos, escândalos morais, contradições humanas, somos levados, algumas vezes, a um enfraquecimento de nossa fé. Cansamos-nos de ver tanta banalização da pessoa humana, falta de respeito è integridade do outro, desrespeito à dignidade que é intrínseca a todo indivíduo.
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E no fim de cada ano isso parece se tornar mais latente. Saber que um novo ano está por vir e vamos ter que enfrentar novos conflitos e tristezas individuais ou sociais, algumas até maiores, não deve ser sinal de derrota, mas deve nos colocar numa posição de esperança, que nos impulsiona para frente.
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Sentir-se triste ou indignado diante de tais realidades, entretanto, não quer dizer que somos paradigma de verdade ou seres impassíveis de corrupção. Tudo isso é sinal de que temos em nós uma fagulha do divino que grita a cada instante que algumas posturas são equivocadas e que temos de corrigi-las.
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Somos seres históricos, em constante evolução, fomos transformados do caos para o cosmos, tendemos para a ordem, para a Perfeição. E é diante disso que Isaías nos enche de esperança: “Fortaleçam as mãos cansadas, firmem os joelhos cambaleantes” (Is 35, 3). Ele não propõe uma fórmula para solucionar os nossos problemas. O caminho do homem sempre deve ser o da frente. É caminho de luta.
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Isaías nos ensina a enfrentar os problemas, não retirá-los de nossa frente. E mais do que isso, nos aponta para um futuro redentor, para uma realidade ordenadora do mundo que está sempre disposta recolocar a humanidade em seu caminho rumo à santificação. O profeta nos evoca: “digam aos corações desanimados: ‘Sejam fortes! Não tenham medo! Vejam o Deus de vocês, ele vem para vingar, ele traz um prêmio divino, ele vem para salvar vocês’” (Is 35, 4).
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Essa luta, entretanto, não é instantânea, mas se desenvolve na paciência, na luta cotidiana à exemplo do agricultor (cf. Tg 5, 7) que aguarda a semente que plantou dar frutos. A carta de Tiago nos indica novamente o caminho: “sejam pacientes” (Tg 5, 7). Não podemos dar muitas respostas para o mundo, não podemos sempre apontar o caminho certo ou errado. É preciso esperar.
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Mais cedo ou mais tarde o Filho do homem sempre aparece para julgar todos aqueles que se encontram no erro, para pôr ordem em tudo o que precisa se ajustado. Não podemos nos posicionar em seu lugar, só ele é quem pode definir, organizar, colocar ordem nas coisas. Nesse sentido, nos é dada mais esperança: “[...] o juiz está às portas” (Tg 5, 9).
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O Filho do homem se manifesta exatamente nessa teia de contradições humanas, no pecado do homem, na sua busca por felicidade. Saber que equívocos, escândalos e conflitos são parte da natureza humana é abrir espaço para que o Deus de justiça se manifeste em nossa realidade. É o próprio Jesus que nos diz: “Feliz aquele que não se escandaliza por causa de mim” (Mt 11, 6).
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Nosso Senhor promete o maior bem que o homem pode conquistar: a felicidade, o sentido pleno da vida. Quem sabe ver nas incongruências humanas a possibilidade de crescimento social passa a evitar sofrimentos inúteis e abraçar outros que permitem um contínuo amadurecimento pessoal.
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Saibamos considerar o exemplo de Maria. Ela não se escandalizou perante a proposta de ser mãe do filho de Deus. Diante de uma realidade de negação humana, ela soube gerar no silêncio aquele que foi o salvador da humanidade. Maria não se posicionou como a protagonista do mistério da redenção, mas aprendeu a esperar aquele que foi o paradigma de toda a humanidade.

Ficai atentos

A Diocese de Caicó assumiu em sua última Assembléia de Pastoral a proposta das missões como eixo norteador dos seus trabalhos durante o ano de 2011. Todas as comunidades devem se debruçar sobre esse modo de ser cristão assumindo pela Igreja tanto local como universal.
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Porém, corremos o risco de abraçar essa proposta segundo as nossas compreensões individuais de missionariedade ou evangelização, desconsiderando que a ordem de Jesus aos seus discípulos era um imperativo universal. Todos os que quisessem seguir os seus passos deveriam ser testemunhos e proclamadores de sua mensagem de vida.
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Missão, nesse sentido, não é uma ação de uma parte dos cristãos que têm a coragem de sair de seus espaços individuais ou geográficos e ir à procura do outro que esteja precisando de uma mensagem de vida. Evangelização não é uma técnica ou habilidade que a Igreja encontrou para difundir a Palavra da vida, feita carne em Jesus.
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Quando somos advertidos pelo Senhor quanto à volta do Filho do homem (cf. Mt 24, 44), estamos sendo alarmados de que precisamos viver de forma constante, fiéis à nossa opção inicial. Se optamos por viver segundo a mensagem do Cristo morto e ressuscitado, devemos lembrar que entramos em um modus vivendi, um jeito de ser que nos move a uma postura de vida diferente da que vemos constantemente, à luz de uma Pessoa.
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Podemos estar formando grandes trabalhos pastorais, desenvolvendo inúmeros projetos comunitários, salvando muitas almas de perigos sociais ou morais, mas esquecemos que a qualquer hora podemos, simplesmente, acabar (cf. Mt 24, 39). E o que passa a importar não é o número de pessoas beneficiadas pelas minhas ações, mas como eu as desenvolvi. As posturas que eu estava assumindo ao desempenhar cada atividade, por menor que fosse.
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Nesse caminho, a missão que devemos assumir não é mais um movimento pastoral, mas um modo de agir cristão, fazendo grandes e santas realizações a partir de pequenas obras. É, portanto, um estado permanente. Com isso, não posso esquecer que sou missionário – porque cristão – em cada momento da vida. Não posso estar fazendo missão, apenas quando eu falo sobre ou contribuo para uma atividade específica, mas devo me ver missionário, sê-lo.
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A evangelização, que decorre desse modo de ser – não de estar –, provém do fato de que devemos anunciar uma Pessoa. E não há modo melhor de comprovar a eficácia e o valor de certa mensagem do que quando a mostramos com nossa própria vida. Quando sabemos agir como aquele que anunciamos, qualquer palavra torna-se desnecessária. O testemunho, nesse momento, fala mais alto e penetra mais nos ouvidos e na inteligência dos outros do que qualquer outra palavra ou ação.
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É o Cristo quem nos adverte: “Ficai atentos” (Mt 24, 42). Não podemos esperar uma atividade específica para se dizer missionário ou evangelizador. Tenho que agir de forma que, a qualquer momento, eu esteja apto para dar as razões de minha opção inicial, de minha fé. Isso não começa das grandes obras ou dos eloqüentes discursos, mas a cada circunstância de minha existência, por menor que seja.
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Seria muito bom se soubéssemos o dia em que seremos cobrados pelas nossas obras: planejaríamos bem esse momento, nos prepararíamos para ele. Jesus nos ensina que sua volta ocorre de forma contínua, em realidades que nunca esperamos ou nem percebemos.
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Maria é aquela que soube ser fiel em pequenas coisas. Não vemos grandes realizações em sua história, mas a fidelidade era o elemento que a definia como mãe do Salvador. Ela conseguiu atualizar e materializar a mensagem de Deus, em Jesus, a partir de um pequeno “sim”.
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Foi a jovem de Nazaré quem nos ensinou que o maior grito de evangelização se dá no anúncio da presença do Cristo em nossa humanidade. Ela não falou sobre, mas soube trazer dentro de si essa Palavra, testemunhando-a com sua própria vida, sendo, ao mesmo tempo, considerada a mulher do silêncio.

Um novo reinado

O que é um rei? Segundo o dicionário Aurélio é um “soberano que rege um estado monárquico”. E o que é reger? É o ato de “governar, administrar”.
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Celebrar a Festa de Cristo Rei do Universo é compreender a vitória daquele que soube, como ninguém, abraçar de forma integral a humanidade que permeava o mundo em que vivia. Por que rei? Por ele soube ver no homem a possibilidade de plenitude, de perfeição, e soube construí-la.
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Qual o trono desse novo rei? A cruz. É no alto da cruz que Cristo confirma a plenitude da humanidade, regendo-a. O homem só pode afirmar-se como plenamente humano – portanto, divino – quando ele consegue aceitar sua condição de material, perecível, criatura que necessita de uma força maior, que o transcende.
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Ele precisa aceitar aquilo que de fato é. Tudo que extrapola essa realidade vai de encontro à Vontade Divina, criando-se, logo, um distanciamento de Deus, que dói, e nos empurra para baixo: eis aí o inferno.
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“Salve-se a si mesmo...” (Lc 23, 35), “Você pode não sofrer...”, “Há caminhos menos dolorosos...”, “Você pode reinar sobre nossa terra...”
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Cristo mostrou, entretanto, que era necessário ultrapassar a lógica de uma dominação meramente terrena. O homem precisava ser senhor de sua própria realidade, saber olhá-la de forma integral. Prazeres individuais, caminhos fáceis e dominação temporária são coisas perecíveis. O homem é chamado a ir além, estar acima de tudo isso.
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“Salva-te a ti mesmo!” (Lc 23, 37), “Se dominas a situação, podes sair disso...”, “Tens o poder de descer da cruz...”.
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Por que poderia dizer um “sim” ou um “não” ao sofrimento, Jesus soube ser livre. Sua dor foi abraçada sem nenhuma coação. Ele quis mostrar ao homem que o sentido da vida não estava em não sofrer, mas em saber que essa realidade é uma condição natural da vida.
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Fugir dela é estar preso em um desejo desenfreado por um bem-estar que, mais cedo ou mais tarde, sempre nos frustra. Ele nos decepciona porque aparece e desaparece constantemente e não temos controle sobre ele. Andar livre é saber que não sou dependente de um prazer para viver, tampouco tenho que fugir de uma dor.
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“Salva-te a ti mesmo e a nós” (Lc 23, 39), “Eu também preciso levar vantagem nessa situação...”, “Preciso de um Deus que atenda às minhas necessidades...”, “À minha imagem e semelhança...”.
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Gostamos de ver o Cristo ressuscitado, vitorioso sobre a morte, mas temos muita dificuldade em vê-lo na cruz, sofrendo ou morto. Por quê? Esperamos os benefícios que ele nos oferece pelo seu sacrifício, mas esquecemos da completude de sua mensagem: para entrar na glória é preciso passar pela cruz, ou seja, construí-la no esforço.
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Àquele que compreendeu o mistério do Cristo crucificado, foi dada a promessa: “ainda hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43). Reconhecer a mensagem de um Deus que se encarna e mostra ao homem o caminho a ser seguido é aproximar-se do mistério da ressurreição.
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O indivíduo que foi suspenso numa cruz estava acima de muitas coisas. Mais do que isso, sabia que estava acima de tudo, de qualquer dor, humilhação ou injustiça. Ele não se deixava afetar por nada disso, pois era livre. De fato ele sabia governar aquela situação, administrar aqueles fatos de corrupção, fraqueza e negação humana. Por quê? Ele era o Rei da Humanidade, do cosmos que nos permeia, ou seja, era Rei do Universo.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Ir às raízes

“A minha alma está armada e apontada para a cara do sossego. Pois, paz sem voz não é paz, é medo.”
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O conflito que vimos se ampliar no Rio de Janeiro, no Complexo do Alemão, foi reflexo de uma problemática muito mais ampla do que imaginamos. Não estávamos somente diante de um conflito entre soldados e traficantes ou heróis e bandidos, mas diante de um mundo da vida fundado na injustiça e no privilégio de poucos.
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Ao lançar um grande número de soldados naquelas favelas, o Estado e os que o apoiavam estavam como que somente a remexerem em um grande entulho. Entretanto, não se levava em conta que tráfico, assassinato, roubo e seqüestro são apenas a ponta de um iceberg, de um problema que encobre mais do que demonstra.
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A invasão pode ter sido um sucesso. Todos os procurados podem ter sido descobertos, mas isso não representaria a solução dos atuais conflitos sociais.
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A música A paz que eu não quero, composta por Marcelo Yuca, critica uma paz que é construída sobre o silêncio de muitos. Uma tranqüilidade que construída sem a análise aprofundada dos conflitos, somente pela força das armas de uns mais fortes “não é paz, é medo”. O homem, e nós cristãos, principalmente, não podemos aceitar uma paz construída com armas, é preciso ir além, ir às raízes.
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Invadir, prender, calar e matar, são, de fato, soluções mais práticas, mais fáceis, mas solucionaria tal problemática? Se todos os marginais fossem isolados da sociedade, teríamos, realmente construído a paz que tanto desejamos para o nosso mundo e para a nossa vida? João Batista, ao olhar para o mundo em que vivia, profetizava: “O machado já está na raiz das árvores, e toda árvore que não der bom fruto será cortada e jogada no fogo” (Mt 3, 10). Se ficamos retirando da sociedade somente os frutos ruins e não formos à raiz de sua organização para verificar o porquê de tanta barbárie social, correremos o risco de perder os frutos que ainda permanecem intactos.

O que leva um homem a comercializar drogas ou a se drogar? Ou a retirar os bens de outros? O que impulsiona um indivíduo a, diante de um semelhante, retirar-lhe a vida? Que raízes alimentam esses frutos? Isolá-los ou eliminá-los seria a resposta? O que podemos fazer ainda com essa árvore? Podá-la ou replantá-la? Ela precisa ser mesmo totalmente lançada ao fogo?
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É preciso, portanto, rever nossos conceitos de justiça e paz social. Punir quem inflige a lei é sempre mais fácil do que rever as bases que fomentam uma estrutura comunitária. Silenciar com armas e leis um problema é muito mais fácil do que revertê-lo, por que dá mais trabalho e requer o interesse de reverter algumas posturas e compreensões de mundo que podemos não estar dispostos a mudar.
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Podemos ter a certeza de que esse problema pode ser silenciado, e o foi, segundo as ações que foram desenvolvidas naquele local. Mas devemos lembrar que um silenciar é diferente de um solucionar, pois o ato de encobrir um conflito e esquecê-lo temporariamente representa o ato de colocá-lo sob panos quentes . Porém, quando esses esfriam, o que estava escondido volta com muito mais força e poder de dano.
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Para construir a paz que queremos é preciso ir às raízes, não silenciar, pois “paz sem voz não é paz, e medo”.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A dinâmica da vida

Quando estamos diante dos diversos meios de comunicação e nos deparamos frente a casos de criminalidades assombrosas, corrupções alarmantes, desastres naturais inimagináveis, ações espantosas de pessoas que nunca esperamos, somos logo tentados a associá-los a velha imagem do fim do mundo. Será mesmo que estamos nos aproximamos de um fim ou isso é um sinal que a vida não é tão perfeita como imaginamos?

Deus quando criou o mundo do caos, colocou uma ordem nessa realidade: o mundo deveria evoluir. Sua inteligência não apenas criou, mas dispôs tudo segundo um determinado projeto de perfeição. A própria imagem do Cristo como plenitude da criação nos dá essa compreensão. Tudo tende para Ele, é com Ele e por Ele.

Entretanto, essa evolução da natureza, tendo o homem como centro, ocorre de forma material, portanto, contingente. Ou seja, se estamos diante de realidades materiais e históricas, estaremos conseqüentemente perante seres e realidades falíveis, passíveis de corrupção, possíveis de destruição.

Nesse sentido, não podemos projetar a responsabilidade das desgraças de nossa vida para Deus. Destruir homens ou o próprio mundo, em último caso, seria entrar em contradição com a obra da criação que deveria levar tudo e todos para Cristo, isto é, para a plenitude.

Se eu dirijo em alta velocidade, de forma irresponsável, descumprindo normas ou apenas me descuido em algum momento e me acidento, seria mesmo responsabilidade de Deus tal resultado? Se eu moro em um ambiente passível de desastres naturais, posso colocar a culpa em um terceiro se sofro as conseqüências de um maremoto, terremoto ou coisa semelhante? Se ajo de forma leviana com os outros e sofro as implicações de minha postura, poderia afirmar que Deus me abandonou ou sofro por causa de sua ira?

A física nos ensina que toda ação gera uma reação. É aí que a inteligência de Deus se manifesta, como realidade que circunda a minha vida, não como um juiz que bate o martelo a cada ação isolada. É nesse sentido que a imagem de um fim para o mundo ou para os homens pode aparecer: “Eis que virá o dia, abrasador como fornalha, em que todos os soberbos e ímpios serão como palha; e esse dia vindouro haverá de queimá-los, diz o Senhor dos exércitos, tal que não lhes deixará raiz nem ramo” (Ml 3, 20a).

A “morte” do pecador ou o fenecimento, mais cedo ou mais, de uma ação equivocada reflete que nosso mundo tende para uma perfeição, para uma evolução que vai desembocar na plenitude da humanidade e não na sua destruição. E é o próprio Jesus que nos enche de esperança: “É preciso que essas coisas aconteçam primeiro...” (Lc 21, 9). É preciso que as desgraças, os equívocos, as criminalidades e as conseqüências de todas essas se manifestem para que possamos aprender a dinamicidade e a ordem, querida por Deus, disposta no mundo.

Ações naturais ou provocadas pelos homens geram mortes porque agimos de forma equivocada, a “condenação” foi apenas uma conseqüência lógica, a reação motivada por uma ação limitada. Quando agimos de forma equivocada estamos “gerando” o mal e o primeiro a sofrer com ele é que está mais próximo. Esse fim material do erro também é o sinal de que a providência divina está sempre a retomar a criação em suas mãos quando o homem a corrompe.

Quando o anjo do Senhor anunciou a Maria que ela seria responsável por gerar em sua vida a Palavra de Deus, ela não aceitou de forma utópica ou ideal tal proposta. A jovem de Nazaré sabia as possíveis conseqüências de sua opção, aquele não seria um caminho fácil, era preciso entregar-se, abaixar-se, humilhar-se até aquele “eis-me”. Foi por meio daquele sim sacrifical que a Vida plena entrou no mundo, uma ação de entrega que teve uma reação salvadora, não só individual, mas universal.

Que nós também possamos, paulatinamente, compreender a dinâmica do Reino de Deus que se manifesta a cada momento de nossa história. Ele não é uma realidade projetada por uma vontade frustrada, mas é material, é força que nos abraça e nos acompanha no caminho que nos pede um sim à humanidade que nos circunda, um sim à perfeição que nos atrai para Si.

Um sim à vida

Comemorar o dia de todos os santos é, antes de tudo, lembrar que todos os que abraçaram a proposta anunciada e testemunhada por Cristo são chamados também à santidade. Essa, porém, deve ir muito além de uma vaga compreensão de homens modelos ou seres que se presumem paradigma para toda ação. Santidade é buscar uma perfeição para a nossa vida. Essa plenitude, porém, não se encontra tão distante do que pensamos.

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, em um de seus aforismos desenvolvidos no livro A gaia ciência, apresenta o conceito de eterno retorno. Ele inicia com a imagem de um espírito que chega até nós e afirma que a vida a qual participamos, tudo que já vivemos, de bom ou ruim, se repetirá eternamente. O filósofo pergunta: O que faríamos com esse espírito? Agradeceríamos a ele ou iríamos amaldiçoá-lo para sempre?

Essa ilustração trás como pano de fundo outra problemática: Como estamos lidando com a nossa vida? Estamos aceitando a sua realidade como conjunto de subidas e descidas, vitórias e fracassos, dor e prazer, alegrias e tristezas...? Ou estamos buscando somente o que ela pode nos trazer de bom? Se assim o for, não estaríamos construindo uma vida ideal que, mais cedo ou mais tarde, tenderia para a frustração?

Buscar, portanto, a plenitude da vida é desenvolver um movimento de aceitação de sua realidade contingente, ou seja, dinâmica, que está em constante mudança. Nesse caminho, o sofrimento deixa de ser uma realidade que deveria ser rejeitada, pelo contrário, passa a ser visto como uma realidade que nos molda e aperfeiçoa no nosso caminho rumo à perfeição.

O livro do Apocalipse de São João apresenta a visão daqueles que estão gozando da felicidade plena: “Esses são os que vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro” (Ap 7, 14). Eles conseguiram algo que muitas vezes rejeitamos: abraçar o sofrimento como um fator constitutivo da nossa humanidade. A limpidez de sua aparência se mostrou por que eles estavam transparecendo a sua própria natureza: a humana.

O próprio João, em sua primeira carta, fala desse modo de espera: “Todo o que espera nele [em Cristo] purifica-se a si mesmo, como também ele é puro” (1 Jo 3, 3). Andar nos passos do Cristo, como aquele que soube aceitar a vida na humildade, sacrifício e entrega plena, é abrir as portas para o mistério da ressurreição, da alegria de ser confirmado na nossa opção pela vida.

Jesus é quem, de forma plena, nos apresenta, nas promessas das bem-aventuranças, o verdadeiro caminho para a santidade. Tais bem-aventuranças não são um conformismo vazio diante de uma realidade injusta e desregrada, mas no dá a esperança de que, se perseverarmos na nossa opção primeira pela conformação ao Cristo, receberemos a recompensa prometida por Ele. Quando conseguirmos compreender a necessária aceitação à humanidade que nos é dada, o céu se abrirá realmente para nós e conseguiremos contemplar o Filho do homem, Cordeiro vivo. Aí é que seremos felizes, nesse momento é que seremos santos.

Não há maior exemplo de criatura que soube construir a santidade como aquela que gerou e cuidou do Filho de Deus. Maria soube aceitar a sua condição de serva do Senhor, por isso soube se rebaixar diante seu projeto. Sua santidade foi sendo construída não porque ela fez o projeto da encarnação, por ter humildade, por ser obediente, mas simplesmente pelo fato de que ela soube apenas participar da condição de criatura, se integrar na proposta de uma humanidade prometida por Deus, uma humanidade ansiosa por felicidade, uma humanidade desejosa pela perfeição.

Filhos da promessa

No Brasil, após cada período eleitoral, sempre surge um novo rosto político e, com ele, o reflexo de toda uma estrutura social que está por trás. O último, e mais comentado, foi o do Francisco Everardo Oliveira Silva, o palhaço Tiririca. Ele foi escolhido deputado federal do Estado de São Paulo com cerca de um milhão e trezentos mil votos, sendo o político eleito com mais votos em todo o país.

Mesmo que por baixo dessa imagem esteja o fato de que ele fora inserido em um jogo político, sua escolha refletiu também um olhar da população sobre a atual situação nacional. O fato de que ele fora utilizado como sinal de uma articulação política para eleição de outros candidatos que estavam na sua legenda não esconde a realidade que permeia e antecipa tal joguete.

O cidadão do estado de São Paulo elegeu um palhaço para representá-lo porque estava vendo que os economistas, médicos, empresários e professores não estavam dando conta do recado. Mais do que uma manipulação maquiavélica, a escolha de Tiririca demonstra que o brasileiro não está satisfeito com a situação representativa que vê, está perdendo suas esperanças. Ao elegê-lo, espera-se que ele brinque menos com o povo do que os grandes homens do mundo político.

Ficar em uma eterna luta judiciária pela elegibilidade ou não daquele homem pode ser uma perda de tempo, já que o grito de crítica e denúncia já foi dado. A verdade e sinceridade que estava por trás de seus “argumentos políticos” já podem ser consideradas bons indícios de um caminho representativo.

Essa realidade deve ser compreendida de forma mais abrangente: o povo não está satisfeito com os políticos que têm e quer colocar qualquer outra pessoa que não venha com a mesma postura clássica de dominação. A esperança do povo é colocada nas mãos de um palhaço, analfabeto e sem história política.
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Podemos questionar: Será mesmo que ele pode representar o povo? A resposta do livro da Sabedoria é afirmativa, pois tal situação é reflexo de uma ordem que se nos impõe por meio da inteligência Providencial. Assim, proclama o autor sagrado em relação ao Senhor e para Ele: “Sim, amas tudo o que existe e não desprezas nada do que fizeste; porque se odiasses alguma coisa, não a terias criado” (Sb 11, 24).
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Assim, continua: “O teu espírito incorruptível está em todas as coisas!” (Sb 12, 1). Deus se manifesta nas realidades que menos esperamos e é capaz de mudar a vida de todo aquele que busca a salvação por meio de gestos pequenos ou insignificantes. Todas as coisas caminham naturalmente para Deus. Nós somos quem, muitas vezes, queremos distorcer a realidade e impedir que essa manifestação ocorra.
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Saibamos, portanto, olhar para essa nossa realidade e não ver somente um jogo de corrupções e interesses individuais, de brincadeiras e desmoralização política, mas a possibilidade de se poder sonhar com um novo país onde não só quem tem o poder financeiro é capaz de dominar politicamente. Saibamos ver que aquele “homem é um filho de Abraão” (Lc 19, 9), um filho da promessa, e que, assumindo ou não, ele já deu o seu recado à sociedade: precisamos de homens simples, sinceros e autênticos no poder, que representem, efetivamente, os interesses do povo.
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Maria foi aquela que acreditou na proposta inusitada de geração de um Deus em seu próprio seio. Porém, ela soube ver nesse conflito a possibilidade de salvação da humanidade. Seu silêncio, simplicidade e entrega ao serviço gratuito foram os fatores essenciais de uma caminhada de geração da Palavra salvadora pronunciada por Deus em Cristo no seio da humanidade.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Homens dialéticos

Os discursos políticos na disputa para o segundo turno ainda giram em torno das mesmas justificativas: o que foi feito pelo candidato, o que a oposição fez de errado, como era a vida passada dos concorrentes...
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A conclusão que poderíamos tirar desse tipo de discussão é uma só: não votar em ninguém. Se formos olhar mesmo para o passado, ninguém seria digno ou capaz de administrar esse país. As propostas políticas continuam passando longe de serem consideradas...

Esse tipo de postura é resultado do fato de que vivemos numa sociedade isoladamente técnica e objetiva. O mérito é dado pelos trabalhos já realizados, em quantidade e qualidade, apegando-se somente ao que vemos e ouvimos. Esquecemos, nesse caminho, que somos homens em construção, seres em crescimento.

O conceito filosófico de dialética estudado pelo pensador alemão Friedrich Hegel (1770-1831) apresenta bem essa dimensão de expansão contínua de determinada realidade. Segundo ele, haveria certa tese, que receberia diante de si, uma antítese, algo que a contrariaria, opondo-se a ela. Nesse desequilíbrio, a tese absorveria o valor de sua contradição, aquilo que ela tem para contribuir à primeira realidade formando, assim, uma síntese, ou seja, uma tese aperfeiçoada.

O homem, nesse caminho, pode ser compreendido como dialético no sentido que ele não é só constituído de passado, mas é também perspectiva de futuro, é um conjunto de esperanças que lança-se para frente. Tudo que vem até ele, de com ou ruim, é possibilidade de expansão.

A oposição evangélica entre o fariseu e o cobrador de impostos demonstra a proposta de Jesus da necessidade de homens que reflitam sobre o seu futuro, que renove suas esperanças, que não ficam se atolando em um passado que não volta mais. Como passado, o que já ocorreu só tem a nos ensinar. Podemos não seguir, aperfeiçoar ou dar continuidade aos atos já realizados, mas não apagá-los de nossa existência.

Diante daquele que vive no “eu... não sou... Eu faço... e dou...” (Lc 18, 11-12), Jesus aprova e justifica o cobrador de impostos que apenas suplica: “Meu Deus, tende piedade de mim, que sou pecador” (Lc 18,13). É evidente que diante dessa súplica há o desejo de crescimento. Aquele homem sabia de suas limitações, mas colocava-as diante de Deus para que ele, que tudo vê e pode, desse a ele um rumo segundo a sua vontade.

Essa realidade apresenta o fato de que Deus é uma realidade de esperança, que olha não somente para o passado, mas para o esforço humano de querer crescer, do desejo de querer acertar demonstrado pela múltipla caça à felicidade, muitas vezes distorcida pelos nossos falhos sentimentos. O passado é, sim, uma dimensão constitutiva do homem, mas não sua única realidade constitutiva. Como reflexo da ação divina, o homem é construído pelo seu passado, afirmando-o no presente, à luz das esperanças contempladas no futuro.

Maria é testemunha do lançar-se humano diante da vontade divina. Suas condições físicas, históricas e sociais poderiam impedi-la de aceitar aquela proposta de geração do divino na humanidade em que vivia, fatos lógica e materialmente impossíveis. Aquele “eis-me aqui” apresenta o necessário abandonar-se humano diante do mistério providencial de Deus.

Que nós também possamos nos tornar também homens dialéticos, homens de futuro, que sabem colocar sua esperança em um amanhã que ele mesmo, à luz da proposta evangélica, pode construir. Esse projetar-se em um fim determinado por nós mesmos não pode ser realizado sem esforço, sacrifício e perseverança na fé.

Entretanto, no fim de tudo, quando aquele futuro tornar-se hoje, podemos não construir aquele fim que planejamos, mas reafirmaremos as palavras do Apóstolo: “Combati o bom combate, terminei a corrida, conservei a fé” (2 Tm 4, 7).

Uma fé constante

Diante de conflitos pessoais ou sociais, nos perguntamos se Deus não está vendo essas realidades. Onde ele estaria que não nos ajuda e mostra-nos logo uma solução para tais problemas, já que ele tem o poder de curar toda enfermidade e organizar toda espécie de confusão. O fato é que ele pode, sim, dá um basta em todas as dificuldades que enfrentamos, mas não o quer no nosso tempo.

Estamos na sociedade do consumo, do “pagou-levou”, da rapidez nas compras, da comida pronta e dos “objetos” descartáveis, humanos ou não. Essa mesma compreensão é projetada também em Deus. Queremos que ele também seja à nossa imagem e semelhança, atenda às nossas necessidades de forma imediata e solucione os nossos conflitos instantaneamente.

A própria oração e muitos rituais são transformados em fórmulas mágicas que, quando utilizados, têm a função de conquistar certos pedidos. Fato é que, mesmo justos e bons, tais necessidades não podem ser conquistadas de Deus por uma troca material. Deus não quer as nossas riquezas, as nossas habilidades ou virtudes, ele não se deixa persuadir por eles, mas quer o nosso espírito de sacrifício e uma fé perseverante.

A vitória sobre nossas dificuldades só pode ser construída a partir do momento em que temos a consciência de que ela não virá sem sacrifício. Nada que temos é dado de forma gratuita, tudo que existe possui um valor intrínseco, seja na esfera material, intelectual, psicológica ou espiritual. Do mesmo modo, os bens que desejamos receber também devem ser acompanhados por um espírito de luta, de constante e gradativo esforço por sua realização.

O relato do livro do Êxodo da vitória do povo de Israel sobre os amalecitas (cf. Ex 17, 11ss) apresenta a postura de Moisés que pede, insistentemente, a Deus o sucesso de seu povo. A atitude perseverante daquele homem mostrou que seu pedido não era somente humano, mas um ato de fé, no lançar-se diante de um mistério que nem mesmo ele compreendia naquele momento.

Do mesmo modo São Paulo dá continuidade a esse ato de fé em Deus quando pede a Timóteo: “[...] permanece firme naquilo que aprendeste e aceitaste como verdade” (2 Tm 3, 14). A promessa de salvação feita por Deus sempre vêm, mesmo que não seja no momento em que desejamos ou esperamos. O ato de esperar, na oração, pela realização dessa promessa já indica que o homem deve deixar Deus ser Deus, aceitando o seu tempo e a sua vontade.

Nesse caminho, a palavra de Deus é a base na qual será firmada os passos daqueles que querem a superação de suas necessidades. Ela que é fonte de vida, porque voz divina, deve ser utilizada para o crescimento daquele que quer permanecer no caminho que leva a felicidade plena.

Assim, continua o Apóstolo: “eu te peço com insistência: proclama a palavra, insiste oportuna e inoportunamente, argumenta, repreende, aconselha, com toda a paciência e doutrina” (2 Tm 4, 2). A palavra de Deus não é uma espécie de livro que nós devemos ler somente quando estamos tristes ou, pelo contrário, apenas alegres. Mas é fonte permanente de vida, portanto, deve guiar todas as nossas atitudes, sempre.

Uma oração insistente e constante, fundada na Palavra, é que torna possível a realização das nossas necessidades e a superação dos problemas que atingem tanto a nós quando à nossa comunidade. Deus prova a nossa fé, testa-nos para ver se estamos dignos de nos aproximar de sua majestade e gozar de sua felicidade, ele faz “justiça os seus escolhidos, que dia e noite gritam por ele” (Lc 18, 7), basta que a mereçamos.

Maria é para nós o exemplo daquela que conquistou a promessa feita pelo Pai. Ela não foi beneficiada de forma gratuita, mas soube gerar aquele que foi o Filho do homem no silêncio e na simplicidade de sua vida. Porque esperou a manifestação de Deus, Maria soube conformar-se plenamente aos desejos do Senhor, gerando-o em seu ventre.

Possamos também adquirir essa paciência e constância de fé, tão necessárias ao nosso crescimento em busca da realização das promessas feitas por Deus em Cristo. Deixemos que Deus seja Deus, peçamos somente que aprendamos a reconhecer no meio do mundo a Sua mão providencial que está sempre a nos guardar e guiar rumo à manifestação da glória eterna planejada para o homem: a ressurreição.

Gratidão: um sim à humanidade

Estamos vivendo na sociedade do acúmulo. O capitalismo e a sua estrutura envolvente distorcem, de forma alarmante, a idéia de que somos seres continuamente insatisfeitos. A essa tese vem inserida a compreensão de que nada do que temos nos dará satisfação, precisamos sempre de mais.

Isso justifica as necessidades do mercado que se organiza em uma economia que deve estar em constante ascensão. Essa exigência de crescimento requer um mercado consumidor que esteja sempre insatisfeito com o que possuem. A isso, soma-se o fato de que os produtos passam a ganhar prazos de validade – sejam perecíveis ou não.

Bens que perdem o valor em pouco mais de um ano diante de outros mais modernos e com mais recursos, a beleza que se transforma sob a perspectiva de interesses individuais, ações que perdem o seu sentido de ser em relação a outras mais atraentes... está formada a ilusão da moda.

Essa postura inconstante diante das coisas e das pessoas revela não somente que somos seres insatisfeitos, mas que somos homens não gratos, mal agradecidos pelo que temos e somos. Queremos um mundo que não temos e esquecemos tudo o que possuímos. Esse querer sempre mais revela que estamos sempre fugindo de nossa realidade, que não sabemos abraçá-la e trabalhar com os fatos que estão diante de nós.

Valores como perseverança, disciplina, simplicidade são totalmente esquecidos diante de um comportamento inconstante de agir que está sempre à procura do que é menos doloroso, mais belo ou mais fácil.

A postura tanto de Naamã (cf. 2 Rs 5, 15), o sírio, quanto do samaritano (Lc 17, 15-16) que voltam para agradecer ao Senhor pela cura recebida é reflexo de homens que souberam viver suas existências momento por momento, degrau por degrau. Eles poderiam pedir ao Senhor mais graças e bênçãos, mas eles souberam aproveitar aquela oportunidade e permanecerem agradecidos diante daquela realidade.

Querer algo que não está ao nosso alcance também reflete a nossa dificuldade em encarar a nossa vida como realidade humana, como conjunto de dificuldades, superações, alegrias e tristezas, dores e prazeres, vitórias e fracassos. Se vivermos em uma constante busca pelo que é menos doloroso, mais fácil e mais belo, estaremos entrando em uma busca contínua, infinita, pelo que nunca conquistaremos de forma plena.

O apóstolo Paulo parece ter compreendido bem a proposta de gratidão ao Senhor pelo que ele recebeu de suas mãos. Quando escreve a segunda carta a Timóteo afirma: “Por ele eu estou sofrendo até as algemas, como se fosse um malfeitor; mas a palavra de Deus não está algemada” (2, 9). O apóstolo sabia que o sofrimento também era a via que o levaria para uma maior configuração a Cristo, que daria sentido a sua vida.

Acrescenta ainda que “se com ele morremos, com ele viveremos. Se com ele ficamos firmes, com ele reinaremos” (1, 11s). Seguir os passos de Jesus é a via para a conquista de um sentido maior para a nossa vida, é a certeza para a construção de uma verdadeira humanidade, que se firma diante do que temos e somos, não do que queremos possuir.

A jovem de Nazaré soube bem o que era o sentimento de gratidão ao Senhor seu Deus. Diante da cruz ela poderia questionar onde estava a promessa de salvação anunciada pelo anjo, indagar se tudo aquilo terminaria com a morte escandalosa de seu filho. Maria soube aceitar, silenciar diante do mistério do sofrimento, próprio e de Jesus. Porém, porque soube esperar, ela contemplou a salvação.

Que nós também possamos construir em nosso ser esse mesmo sentimento de gratidão ao Senhor que sustentou a vida a Naamã e do samaritano, que deu sentido a missão de Paulo e santificou plenamente Maria. Sem acolher a Palavra pronunciada por Deus Pai, continuaremos sempre a buscar uma razão para a nossa vida sempre fora de nossa realidade. Que a verdadeira insatisfação possa surgir em nossa existência: a de buscar constantemente a humanidade que está dentro de nós e espera por ser abraçada plenamente.

O servo homem


Neste dia 03 de outubro todo o Brasil vai realizar suas eleições para os cargos de deputados estaduais e federais, senadores, governadores e presidente da República. O processo democrático, por mais críticas que possa receber, mostra-se como o caminho de uma participação do povo nas decisões políticas de seus interesses.

O problema surge quando a estrutura representativa, inserida no regime da democracia em nosso país, realiza uma inversão de valores. Aquele que deveria estar representando o povo torna-se cabeça de interesses particulares ou de uma pequena elite político-econômica. O servo torna-se senhor.

Isso é bem claro em nossa realidade. Os homens que recebem mais votos de confiança são os que são provenientes de uma estrutura política já alicerçada em nosso contexto, representam famílias já conhecidas, poderes já sedimentados, ideais já cristalizados. Os nossos políticos vão, aos poucos, se transformando em pequenos deuses, ídolos que devem ser eleitos pela imagem que possuem.

Nesse ínterim, as propostas políticas são as que menos importam no processo eleitoral. Vota-se pelo grupo político que rodeia, pelo apoio que recebem e, pior ainda, pelas obras que já foram realizadas.

O filósofo político italiano Noberto Bobbio afirmou que os limites de um processo democrático está no fato de que o jogo entre poder e direito são invertidos. O poder político, que deveria representar efetivamente o direito do povo, recebe um domínio tão amplo que acaba arrogando-se e esquecendo seu papel fundamental: o de representar. Os direitos dos homens tornam-se joguete em uma estrutura sócio-política articulada por um poder isolado.

Jesus nos apresenta a figura do servo que doa-se integralmente pela realidade que lhe foi confiada (cf. Lc 17, 10). Só o ato de servir já apresenta, em si, a sua riqueza. Estamos construindo algo de concreto para a felicidade de outras pessoas, somos motivo de alegria para outros homens.

Mais excelente ainda é a postura daquele que serve sem esperar nada em troca, não pelo fato de ser o melhor, mas por causa de que esse tem menos chance de se decepcionar com os que o rodeiam. Colocando uma esperança demasiada nos homens, tornamos-lhes ídolos, imagem que será sempre quebrada pela humanidade que a cerca.

Como pessoas que buscam um crescimento pessoal, político e social, portanto, humano, devemos nos compreender dentro de uma estrutura democrática que é fundamentada pelo serviço. Ofício que deve ser reconhecido como um bem em si mesmo, não pelo endeusamento daquele que trabalha, qualquer que seja a função.

O homem evangélico deve ser caracterizado por um contínuo estado de serviço, doação ao outro, como meio de fazer o bem a quem precisa e de autosatisfação, pelo sentimento de utilidade humana. Reconhecer-se servo é aceitar a nossa condição de criaturas, que fomos construídos para a busca de um bem, que só o é efetivamente quando comunitário.

A jovem de Nazaré é o exemplo de criatura que se fez serva, não exigindo nada em troca por isso. Sua missão, por grandiosa que fosse, não foi reconhecida por recompensas imediatas e materiais. A conquista de Maria foi de sentido, ela conseguiu compreender o significado de sua existência, porque se fez criatura. Ela foi feliz, portanto, porque se fez serva.

Que nós possamos nos compreender em uma comunidade de servos, de criaturas que devem buscar o bem mútuo, por isso lutam pela felicidade comum. Aprendamos também a ver nos homens que vão nos representar a possibilidade de líderes-servos, à exemplo de Nosso Senhor. Por meio do serviço, a vontade de Deus se realiza em nossa realidade e, como Cristo, habita entre nós.

O grande abismo

As eleições são consideradas a grande festa da democracia. O povo, a partir de um pequeno gesto torna-se capaz de eleger aqueles que nortearão as ações políticas do país por um considerável período de tempo. Entretanto, o próprio termo democracia, que significa governo do povo, nesse mesmo processo, pode ser questionado.

Será mesmo que estamos elegendo homens que nos representarão nos espaços de discussão política? Eles defenderão a causa do povo que representam? Estão mesmo destinados a deixar o seu tempo e o seu bem estar para doar-se à causa de pessoas que nunca viram na vida ou para lutar por seus direitos?

O sociólogo Boaventura de Souza Santos afirma que vivemos em uma democracia que não é democrática. Ele critica a postura de representantes que não representam o povo. Questiona a ação de legisladores que não legislam e de juízes que não são justos. Por isso afirma: “Precisamos democratizar a democracia”. Precisamos de pessoas que estejam interessadas no homem e nos seus direitos para a administração da nação.

Santo Agostinho apresenta esses problemas com a imagem dos pastores que apascentam a si mesmos. Suas funções perdem o sentido por que deixam de ser um serviço ao povo para defender um benefício particular. Em uma luta irreal pela sobrevivência, queremos defender o nosso bem estar e esquecemos que existem pessoas que estão a padecer por causa disso. O que é suficiente ou sobra em um é sinal de que está faltando em outros.

A figura evangélica do rico que pede a Moisés uma ajuda para que o pobre Lázaro saciasse a sua sede, e que lhe é negada (cf. Lc 16, 24ss), apresenta a conseqüência de quem se distancia do outro para a busca de seu próprio bem estar. Havia, de fato, um “grande abismo” (Lc 16, 26) entre o pobre e o rico, antes e depois da morte. O primeiro era motivado pelo rico que negava ao outro os bens que possuía em excesso, o segundo foi também motivado por esse, só que acabando sua vida só, sentiu a necessidade de saciar-se com a presença do outro, que lhe estava sendo negada por sua opção inicial.

O filósofo alemão, ainda vivo, Jürgen Habermas afirma que em uma sociedade que esse tipo de características são marcantes nos seus cidadãos, a saída necessária se encontra na inclusão do outro nas relações sociais. Saber que minha vida não se desenvolve de forma isolada, que precisamos do outro para o nosso crescimento humano, ético e político, deve ser a compreensão mais humana diante dessa problemática.

Faz-se necessário considerar o outro como participante necessário dos processos de organização social. Não podemos somente “proteger” quem mais precisa, “defender” o direito dos necessitamos, “representar” aqueles que têm menos voz. O que se faz necessário é deixar que eles participem do processo de organização política, deixar que eles falem a suas necessidades e suas propostas de superação desses conflitos.

É realizar o que Habermas denominou de agir comunicativo, onde as interações sociais se realizam quando todos os membros da comunidade têm o mesmo direito de expressão de opinião e sugestões políticas.

Que nós também possamos superar a criação desse abismo social que se forma gradativamente em nossas comunidades. Para isso é preciso compreender que vivemos em sociedade, temos um pacto de proteção mútua, à exemplo do corpo, onde se um adoece todos os outros membros também são prejudicados. Deixar que todos os outros participem efetivamente da organização político-social de nosso contexto é o caminho mais curto para diminuir esse abismo humano que nossa individualidade irracional cria.

Maria é o maior exemplo desse despojamento em favor do outro. Ela soube deixar que sua vida fosse permeada por uma ação que contribuiria para a salvação de todos os homens. A jovem de Nazaré foi capaz de negar-se a si mesma para ajudar a humanidade a crescer, soube deixar de lado sua individualidade para sentir-se mais humana afirmando-se participante de uma comum-unidade.

Afirmando a comunidade humana, ela afirma o homem em si, com todo o seu valor e sua potencialidade. Afirmando o valor do homem, Maria consegue gerar aquele que foi, da humanidade, a plenitude, a perfeição.

Deus, o único fim

Estamos na sociedade dos planejamentos, dos projetos, das metas e dos prazos a serem atingidos e cumpridos. Tudo passa a ser medido pelo grau de eficiência das ações. Buscamos uma qualidade em todas as nossas atividades. Queremos colocar todas as realidades que nos envolvem dentro do plano lógico da eficácia, mas esquecemos de trabalhar com o que é básico em nossa existência: a vida.

Max Weber, sociólogo alemão, identificou que a sociedade moderna entrou em um processo de burocratização. Tudo passa a ser medido, quantificado e definido segundo valores objetivos. Essa realidade não é negativa, todos precisamos de certa organização em nossas atividades, cumprir objetivos, estabelecer metas, construir sonhos para o que buscamos de mais essencial em nossa existência.

O problema do processo de burocratização da vida, estudado por Weber, estava no fato de que o homem desaparecia nesse processo. A vida estava se tornando tão racional e objetiva que deixava ser vida, perdendo a sua dimensão complexa, ilógica, transcendental.

Se perguntássemos a qualquer um de nossos conhecidos quais os objetivos de sua vida e depois fôssemos insistindo questionado o porquê de cada um deles, mais cedo ou mais tarde a palavra felicidade, ou alguma equivalente a ela, surgiria. O homem tem sonhos e metas porque quer ser feliz, precisa de uma paz interior.

O problema está no fato de que ele não consegue distinguir entre o que é fim em si mesmo e quais serão os meios para conseguirmos essa meta definitiva. Nesse espaço é que o emprego, os bens materiais, a família e os amigos tornam-se uma meta final. Esses, que deveriam fazer com que o homem fosse feliz, tornam-se o seu único objetivo.

Entretanto, esquecemos que tudo isso é fácil de ser conquistado, basta atenção no objetivo e o esforço necessário para construí-lo. Por outro lado, se esses objetivos são considerados como fim em si mesmo, logo que forem realizados, fará com que o homem perca o sentido de sua caminhada. Isso porque estaria havendo uma troca de meios por fins.

A felicidade verdadeira que o homem busca é a eterna, ou seja, a que é plena, a que dura para sempre, de forma perfeita. Essa não pode ser construída se não a temos, primeiramente, como o objetivo primeiro de nossa vida, por meio do qual todos os outros serão instrumentos de sua realização.

É nesse sentido que Jesus pede de nós uma decisão firme e definitiva para a nossa vida quando afirma que não podemos servir a dois senhores (Lc 16, 13). Se colocamos a riqueza, o nosso emprego ou as pessoas que estão próximas a nós como único bem que podemos possuir ou já possuímos estamos perdendo o norte de nossa vida já que essas metas podem ser facilmente conquistadas e perdidas.

Deus é o único fim de nossas vidas. Quando conformamos todas as nossas ações à sua vontade estamos aprendendo a buscar a felicidade definitiva de forma mais decisiva. Os bens materiais, nossa posição social e as pessoas que estão próximas a nós devem ser instrumentos para esse fim último: a felicidade.

Que nós possamos aprender com Maria o sentido de uma decisão plena pela proposta de encarnação do Verbo de Deus. Ela não soube somente deixar ser instrumento de Deus, mas também optou por essa proposta dando um sim definitivo. Se a jovem de Nazaré ainda estivesse dividida entre a palavra de Deus e a sua própria vontade, conseqüentemente Jesus Cristo não teria nascido.

Vejamos em Maria a possibilidade de uma decisão firme e sólida para a construção de nossa felicidade. Deixar-se dividir entre a mensagem de Deus e as propostas humanas de felicidade é arriscar trocar o certo pelo duvidoso, o eterno pelo contingente, a vida plena pelos bens que se esvaem na primeira tempestade.

O mistério do outro


A imagem bíblica da construção de um bezerro de metal fundido feito pelo povo que estava vagando pelo deserto (cf. Ex 32, 8) é reflexo de uma postura que repetimos constantemente. Temos a fantástica capacidade de criar, em um piscar de olhos, deuses ou demônios.

Ao olhar para os outros, queremos logo lançar conceitos prévios sobre eles, colocamos todo o nosso “ouro”: conhecimentos, habilidades e pré-juízos, para montar uma imagem positiva ou negativa das pessoas. Ele passa a não ter mais um valor em si, mas ser somente o reflexo de nossas idéias e cogitações.

Isso geralmente ocorre porque temos um raciocínio tão lógico perante o outro que acabamos por esquecer que estamos nos relacionado com homens, com histórias de vida, com seres tão complexos e que não podem ser compreendidos por um julgamento limitado. Esquecemos que por trás de cada ação, mínima que seja, há uma estrutura social, histórica, econômica e biológica envolvente, não existindo ações isoladas ou fonte de um querer independente.

O problema do julgamento amplia-se porque está associado à condenações: “Ele deve ser punido”, “Aquele vai para o inferno”, “Este terá o castigo que merece”. Gostamos de nos posicionar acima da pessoa que erra para proclamar a sua falha, como se fôssemos capazes de explicar também a situação em que ela se encontrava para praticar tal equívoco.

São Paulo compreendeu bem a proposta de Cristo de salvação do homem por meio de seu pecado. Ele, na carta a Timóteo, escreve que seu perdão foi dado por que ele “agia sem saber, longe da fé” (1 Tm 1, 13). O equívoco humano, pode ser realizado por ignorância, por situações biológicas, psicológicas ou espirituais, realidades que nossa racionalidade não pode perscrutar de forma tão fácil e imediata.

É diante disso que o Apóstolo proclama: “Jesus Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores” (1 Tm 1, 15) e o próprio Senhor, pelas palavras de Lucas, afirma que “haverá no céu mais alegria por um pecador que se converte do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão” (Lc 15, 7). Deus não está a nos condenar constantemente porque ele vai além de uma correção unidirecional, “bateu-levou”, ele sabe nos ver de forma mais ampla e localiza nossas ações segundo os seus critérios de salvação.

O exemplo do filho pródigo que se levanta para pedir perdão ao seu pai pelo erro de ter se distanciado de sua proteção, seguido pela acolhida amorosa peterna (Lc 15, 21ss) é o reflexo de um Pai que sabe ver a inexperiência de seus filhos e abraça-os incondicionalmente, perdoando-os.

Saber ter um olhar mais misericordioso pelo nosso irmão que é limitado em algum aspecto é saber que suas ações nem sempre são de sua inteira responsabilidade, há sempre algo que ultrapassa nosso entendimento. Querer forçar a modificação uma personalidade seria agir de forma desumana pelo fato de estarmos diante de uma série de estruturas que envolvem tal ação.
Mas quando vamos saber que o outro erra porque quer ou quando ele foi vítima da complexidade de sua existência? Nunca. E nem precisamos sabê-lo, porque não cabe a nós entender uma realidade que é produto de um amor Divino, e que, por si mesmo, é mistério. Diante do homem, portanto, o melhor que podemos fazer é calar. É deixar que Aquele que o criou, tome conta de sua obra e a reorganize quando necessário.

Que Maria, a mulher do silêncio, nos ajude a construir uma postura menos crítica e arbitrária em relação ao homem. Ela, diante da cruz, poderia se revoltar pela injustiça que estava sendo cometida contra o seu filho, o Enviado de Deus. Entretanto, ela manteve-se em silêncio, perante o Cristo que também não condenava os seus algozes.

Assim como Maria, que também nós possamos nos curvar diante do mistério do outro, que reflete a presença de Deus em suas múltiplas manifestações. Diante do homem, temos também que assumir a nossa condição de criaturas, que sofrem as mesmas adversidades e limitações, até os mesmos erros se tivéssemos em seu lugar.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Silêncio: o caminho da cruz


Quem assiste ao horário eleitoral gratuito, à propagandas nos diversos meios de comunicação ou participa de comícios realizados pelos candidatos a cargos públicos nesse período eleitoral se depara com um alto número de julgamentos e críticas em relação às oposições.

É gasto muito tempo acusando as limitações dos outros, as suas ineficiências políticas e as falhas de um passado pessoal, ou seja, tenta-se vencer provando que o outro é incapaz, e que quem critica tem menos erros, por isso, deve ser eleito. Nesse movimento, é esquecida a atitude essencial de quem quer trabalhar pela comunidade por meio de um regime representativo: as propostas de governo.

É deixado de lado o fato de que estamos precisando mais de atitudes do que de pensamentos. Necessitamos mais de propostas concretas do que de análises sociais vagas, muito menos de críticas destrutivas aos erros alheiros.

É evidente que esse é um jogo político aceito por considerável parte da população. Isso porque ela também está envolvida em uma estrutura social que preza pelo olhar externo em relação a um primeiro progresso pessoal interior.

O livro da sabedoria é enfático ao dizer: “os pensamentos dos mortais são tímidos e nossas reflexões incertas” (Sb 9, 14). Estar diante do outro é estar perante o reflexo da atitude criadora de Deus, portanto, de um mistério divino. Lançar conceitos sobre alguém é julgá-lo, é querer conhecer todas as condições que envolvem o outro e o fazem tomar qualquer postura.

O caminho para superar esse ajuizamento sobre o outro é apresentado pelo próprio Cristo, nas palavras de Lucas: “Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo. Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo” (Lc 14, 25-27). Caminhar segundo os passos de Jesus Cristo implica, portanto, um despojar-se, um calar-se diante do mistério do Outro, manifestado pelas ações humanas e sociais.

Ser discípulo é caminhar segundo um mestre, seguindo os seus passos. Jesus realizou o caminho de obediência à vontade do Pai: ser Palavra de Deus entre os homens. Nós, como criaturas, devemos confirmar a nossa condição querida por Deus: homens plenos. Essa plenitude não pode ser construída se não tivermos em mente que temos uma cruz a levar. Carregá-la já requer um esforço extremo, olhar para fora ou para as cruzes alheias torna seu peso insuportável.

O despojamento significa que nossos bens, habilidades, conhecimentos e até mesmo nossos laços humanos não são capazes de trazer felicidade para a nossa vida, não são, portanto, um fim em si mesmo. Se eles não são instrumentos para realizar a vontade de Deus, algo está errado e deve ser corrigido.

Silenciar diante desse mistério é a verdadeira atitude que devemos ter diante de muitas realidades que enfrentamos e que não podemos solucionar, pois vai além de nossa humanidade. Deixar-se conduzir por essa proposta Divina de humanização do homem é o verdadeiro caminho.
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Maria é o nosso modelo maior de silêncio. Ela soube calar-se diante da promessa de que a geração de Jesus traria sofrimento para a sua alma. Ela guardou no coração o fato de que seu filho tinha uma missão extraordinária. Soube também chorar silenciosamente a dor do Cristo, morto numa cruz, pois sabia que a verdadeira vida estava além daquele fato.

Que nós possamos, a partir desse exemplo, aprender a silenciar diante do outro. Ele é a manifestação de um Deus que vai além de nossas compreensões e julgamentos. Saibamos olhar mais para nós, para a nossa cruz e buscar o verdadeiro sentido de vida que está na obediência à nossa verdadeira missão: ser homens perfeitos, homens felizes.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Homens humildes, criaturas perfeitas

Nesse período de eleições somos convidados a analisar a postura de muitos daqueles que se candidatam aos cargos públicos. Alguns justificam a sua eleição pelos projetos e obras que já realizaram. Cria-se uma imagem de super-homens dessas pessoas a partir dos trabalhos que já fizeram em benefício do povo.


Entretanto, muitas vezes é esquecido o fato de que tais trabalhos não devem ser vistos como méritos dessas pessoas, mas como obrigação daqueles que são eleitos para representar a vontade da população dentro de uma estrutura democrática de governo. Ninguém, portanto, deve justificar suas candidaturas pelo que realizou, mas pelas propostas novas que trazem para melhorar a sua comunidade e, com isso, realizar o seu serviço público.


Essa postura é reflexo de uma concepção social que põe o homem no centro de todos os acontecimentos históricos e políticos. Ele passa a se definir como a única causa, justificação e agente dos fenômenos políticos e morais. Como centro, o indivíduo compreende-se como criador e governador de uma estrutura global que, devido às limitações humanas, foge, muitas vezes, ao controle do homem.


Frente às adversidades psíquicas, sociais e naturais presentes na história, quando não há nenhum valor moral que possa dar norte ao homem e às suas ações, mais cedo ou mais tarde, ele sempre vai se perder em suas opções individuais.


Quando Deus nos aponta a perfeição como meta primeira, ele nos propõe que assumamos o lugar que nos foi preparado: o de criaturas de uma realidade Divina, não o seu lugar. O dicionário Aurélio apresenta o termo perfeito como aquele ou aquilo que “reúne todas as qualidades concebíveis, ou atingiu o mais alto grau numa escala de valores”, e aquele ou aquilo que é “completo, total; rematado, acabado”.


Ser perfeito, portanto, não significa, como a promessa feita aos nossos primeiros pais, ser como deuses. O homem “completo” é aquele que encontrou o verdadeiro sentido de sua existência: o reflexo da criação amorosa Divina de seres que poderiam assumir, livremente, a sua proposta. Nesse sentido, o caminho pelo qual podemos verdadeiramente chegar a essa plenitude da vida não é outro senão pela humanidade. O instrumento para essa construção, que não é palpável (cf. Hb 12, 28), não pode ser outro diferente da humildade.


Sentir-se servo diante da realidade Divina que se manifesta continuamente por meio da história humana e obediente ao seu caráter providente, que ensina a cada dia a olhar a sua Palavra, os grandes exemplos humanos e o mundo, como mestres para o nosso crescimento pessoal e comunitário, é a primeira via dessa humildade. A segunda se dá por meio do ato de se pôr diante do homem como mistério. Como criatura de Deus, a pessoa humana não pode mais ser vista como mero objeto de manipulação, ela vai sempre além. Como produto de uma complexa estrutura histórica, biológica, social e psíquica, o indivíduo deve sempre ser compreendido como mistério, reflexo de um Deus que foge às lógicas e raciocínios humanos.


A promessa de elevação da pessoa que se humilha (cf. Lc 14, 11) diante do mistério de Deus presente na história humana por meio do outro ou dos acontecimentos por ele realizados é o caminho para a construção de sua felicidade, de sua completude.


Tomemos Maria como exemplo. Ela foi assunta ao céu porque soube curvar-se diante do mistério do Outro, do Deus que queria fazer-se carne por meio de sua Palavra. Porque ouviu ela gerou. Humilhando-se para servir ela conseguiu chegar à plenitude de sua humanidade: ser criatura perfeita.


Que nós também possamos assumir essa postura de servos diante do outro (homem) e do Outro (Deus). Esses são caminhos pelos quais podemos construir um sentido para as nossas vidas, ser mais felizes, ser perfeitos.


Não como centro, mas como servidores em sua comunidade, o homem poder caminhar de forma mais livre e feliz entre os mistérios com os quais ele se depara continuamente em sua existência.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A porta é estreita


O Tribunal Superior Eleitoral – TSE vem, recentemente, apoiando um comercial contra a compra de votos nas eleições desse ano. Em um deles, uma mulher troca um hospital bem equipado por uma dentadura. Em outro, um homem troca uma escola para os seus filhos por uma pilha de tijolos. Fingindo fazer uma grande transação comercial, outro homem vende-se a si mesmo por quatro anos, sendo preso em uma caixa junto a outras pessoas que também se venderam.

Quantas outras realidades poderiam ser a essas acrescentadas? Por quanto ou pelo quê nós vendemos a nossa consciência? Ela tem efetivamente um preço? Por que ela é, algumas vezes, vendida por preços tão baixos?

O fato é que estamos inseridos em uma comunidade imediatista. Queremos as coisas mais fáceis, que exigem menos esforço, que não necessitam de construção ou modificação. De forma equivocada, assumimos o ditado popular de que é melhor um pássaro na mão do que dois voando. Aceitamos realidades já prontas, por que simples, e evitamos construir as mais necessárias, as que são essenciais para a nossa existência individual e comunitária.

Conceitos como esforço, sacrifício, trabalho contínuo e perseverante estão a cada dia desaparecendo em uma realidade social que preza pelo fácil, prazeroso e já feito. É esquecido, porém, que essas opções que não estão bem fundamentadas desaparecerão como surgem: de forma rápida. Se quisermos realmente uma felicidade bem alicerçada, que não se desintegre na primeira adversidade, temos que construí-la no sacrifício. Ela querer algo que, muitas vezes, temos dificuldade em oferecer: tempo e esforço.

A figura da porta estreita oferecida por Jesus Cristo (cf. Lc 13, 24), ao ser questionado quanto aos que seriam salvos, apresenta bem a sua proposta de redenção. O homem só pode entrar no Reino de Deus, ou seja, ter uma vida plena e feliz se ele a construir gradativa e paulatinamente. Aceitar realidades fáceis, que não exijam muito trabalho, é querer entrar pela porta larga, uma entrada, porém, que nos leva a caminhos incertos.

A própria carta aos hebreus compreendeu a mensagem do Senhor quando afirma: “No momento mesmo, nenhuma correção parece alegrar, mas causa dor. Depois, porém, produz um fruto de paz e de justiça para aqueles que nela foram exercitados” (Hb 12, 11). Enfrentar a vida como trabalho que tem seus momentos de alegria e tristeza, dor e prazer, altos e baixos, é exercitar-se para tornar-se plenamente homem assemelhando-se àquele que foi plenamente Deus.

Nesse caminho, ver a dor ou o sacrifício não como um mal, mas como algo participante da vida humana é saber sentir a presença de um Deus que é pai e que está constantemente a nos proteger e ensinar. A carta afirma ainda: “o Senhor corrige a quem ele ama e castiga a quem aceita como filho” (Hb 12, 6). Quando aprendemos a sentir o peso da mão de Deus a nos modelar, nossa existência ganha um novo sentido e qualquer sofrimento transforma-se em alegria.

Maria foi testemunha da felicidade de quem procura entrar pela porta estreita. Ela soube curvar-se para adentrar numa realidade que tinha Deus como soberano e soube aceitar a proposta de salvação do homem ao permanecer, em pé, diante da Cruz. A mãe de Deus entendeu todo o sentido do sofrimento de seu filho quando silenciou diante desse mistério e contemplou a grandeza de sua ressurreição.

Que nós também, ao nos deparar diante de realidades fáceis, possamos nos questionar e saber que vai também fácil o que vem sem esforço. Abramos nossos olhos para as situações já prontas e que não requer nenhum esforço, que são postas à nossa frente. Elas nos desviam da possibilidade de crescimento, de entrar por uma porta que é estreita, mas que nos ajuda a exercitar nossa humanidade diante das inúmeras adversidades apresentadas pela vida.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Crescer somente em Deus


“Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judéia”. (Lc 1, 39)

Estamos no mundo das grandezas, dos grandes fatos e heróis, das eloqüências e dos amplos eventos históricos e políticos. O homem passa a se curvar diante de toda grande obra realizada sua inteligência.

Uma vida simples, humilde que sabe oferecer, em pequenos gestos, um sinal maior de humanidade aos outros está sendo rapidamente esquecida. O homem passa a querer ser senhor de uma comunidade que ele mesmo não consegue administrar e não sabe conduzi-la porque não tem elementos suficientes para tal. Não sabe ouvir nem ver a história e compreender o Poder que a organiza.

Celebrar a assunção de Nossa Senhora é festejar a elevação de todo homem que entrega a sua vida a Deus de forma livre e gratuita, sem deixar de lado a sua condição humana.

O texto bíblico, ao apresentar Maria subindo apressadamente para a região onde ficava a casa de Isabel, nos mostra o zelo da Santa Mãe de Deus pelo serviço ao próximo. E até mais do que isso, a imagem de sua subida para a realização desse ofício, por simples que fosse, representa também a nossa necessária subida para realizar o nosso ser Cristão.

Maria só conseguiu subir, e subir apressadamente, porque era livre. Ela, ao correr ao encontro de sua prima, ia de mãos vazias, sem muitas bagagens, preocupações ou pré-conceitos. Por simples fosse aquela ajuda, ela a realizava como a mais importante de sua vida. Daí é que começa a ser desenhada a sua humildade, ela sabia construir uma santa existência por meio de pequenos gestos de bondade.

A grandeza feita por nosso Senhor na jovem de Nazaré só foi possível porque ela conseguia gerar Deus a partir das pequenas coisas. Ao cuidar das roupas da família de Isabel, ao preparar a alimentação, no cuidando da casa, ela conseguia realizar um serviço gratuito e amoroso a quem precisava.

Por não estar interessada no que sua prima viesse a lhe oferecer em troca por aqueles dias de serviço, por fazer aqueles trabalhos de forma livre e gratuita, ela conseguia viver a dimensão maior do amor: o ágape, o amor doação, e doação livre. Esse exercício foi tão contínuo em sua vida que Deus resolve a escolher como instrumento de sua encarnação. Por meio daquela que sabia realizar um amor gratuito e contínuo, esse foi materializado em nossa humanidade: Jesus Cristo.

Maria sabia subir sem grandes dificuldades porque compreendia que ia realizar um serviço grandioso e um trabalho que exigiria dela um total despojamento de suas próprias vontades e interesses. Do mesmo modo, também nós que desejamos encontrar o sentido da vida que se realiza na contemplação da face de Deus, realidade perfeita, devemos também correr, decididos, para um serviço de entrega a quem mais precisa de nossa ajuda.

Essa corrida para a realização de um amor doação, assim como em Maria, se dá por meio de uma subida. Essa, como todas as outras, exige nosso esforço e sacrifício para não haver desistência no meio da elevação. Nesse caminho sempre haverá deslizes, tropeços e até quedas que podem nos fazer voltar um pouco, mas, com os olhos fixos na proposta inicial não há como haver desistências.

Possamos ver em Maria o exemplo de serva que foi elevada aos céus porque sabia subir livremente até às alturas do amor gratuito, e de uma entrega livre e integral de sua vida à pessoa humana. Construamos também a nossa elevação à vida feliz. Essa só é possível quando aprendemos a subir, livre e decididamente, para o amor doação que só é pleno em Deus.

Educar para a vida



Educar nunca foi uma missão fácil. Fazer com que o outro compreenda a estrutura social que o cerca não é uma atividade simplesmente técnica a ser realizada por um profissional do ensino. Isso acontece porque não se “ensina” a viver.

A palavra ensinar lembra o “ensignar”, ou seja, marcar com signos, colocar marcas nas pessoas para que elas apreendam (“prendam em si”) um conhecimento externo. Porém a educação deve ir além dessa marcação ou “fôrmação” (“colocar numa fôrma”), pois deve mostrar ao indivíduo que o mundo que ele vai enfrentar é mais sério do que se imagina.

A recente polêmica acerca da violência infanto-juvenil realizada pelos pais abre espaço para uma ampla discussão: Os pais ainda podem continuar castigando seus filhos por meio das “palmadas”?

Esse tradicional modo de “exemplar” os filhos foi, aos poucos, sendo substituído com a contribuição da psicologia e da psicopedagoga. Há outros modos de mostrar aos educandos que a sociedade exige pessoas que sigam normas e limites morais. Técnicas de imposição de regras por meio da punição com privação de algum bem e repetição insistente desse castigo, são exemplos de que a violência pode ser substituída.

Mesmo assim, a palmada foi um modo, mesmo rústico e tradicional, que os nossos pais encontraram para mostrar que há limites para as nossas ações. É um símbolo a afirmar que a justiça presente no mundo pune os que erram, que a dor é uma conseqüência lógica do desvio da verdade e que, cedo ou tarde, ela sempre chega.

É certo que a permissão das “palmadas” realizada pelos pais já levou a muitos abusos. Mortes, traumas e a geração de mais violência familiar e social tendem a se multiplicar a partir do momento em que tais crianças são castigadas de modo absurdo. Mais do que um castigo ou um modo de exemplar, esse tipo de violência excessiva é reflexo de uma estrutura social que também é violenta, sem limites e valores que possam ser nortes para as suas ações.

A grande responsabilidade que é dada aos pais de educarem os seus filhos para a vida está dentro da proposta evangélica do servo que recebe a grande responsabilidade de guardar os bens do senhor (cf. Lc 12, 36ss). A grandeza na geração, cuidado e educação das crianças que é dada primeira e fundamentalmente à família é uma missão que requer mais do que técnica mas, um amor que é doação e esforço contínuo para querer o bem do outro.

Fazer com que o outro compreenda que a vida possui um conjunto de valores e normas a serem respeitados é um dos principais focos da educação, ao lado da participação crítica social e da construção de um mundo justo e fraterno.

Saber que a punição é a conseqüência necessária para os que optam por caminhos equivocados seria o sentido principal das “palmadas”. Entretanto, essa se transforma numa faca de dois gumes na medida em que se perde o controle dessa simbologia, do sentido desse “exemplar”, gerando uma violência que cresce gradativamente.

Que tenhamos o exemplo daquela que foi a maior educadora de todos os tempos. Maria é verdadeira mãe que soube ensinar ao seu filho que o caminho da vida feliz estava na obediência integral à vontade de Deus. Ela sabia da responsabilidade de gerar no seu ventre o Filho do Homem, aquele que, sendo verdadeiramente humano, foi verdadeiramente divino.

Devemos ver na mãe de Jesus o exemplo daquela que soube ensinar que a construção do homem estava em uma vida simples e modesta, organizada por uma ordem disciplinar da vida. Deixar de corrigir seria um risco que os pais correm em entregar ao mundo pessoas não preparadas para enfrentar as suas vicissitudes. Os reflexos de uma omissão familiar estão sendo enfrentados por todos nós que somos vítimas da violência, dos vícios e das múltiplas corrupções.

Aprendamos a ter esse temor (cf. Lc 12, 48) diante desse grande encargo que é educar para a vida e, mais ainda, tremer diante do homem que deve ser modelado à luz do Filho de Deus que soube aceitar a sua plena condição de criatura e por isso soube viver plenamente a sua existência.

Ricos para Deus


Se Deus pedisse contas de nossa vida ainda hoje, o que apresentaríamos a Ele? Se nossa vida tivesse um fim, o que deixaríamos de exemplo para aqueles que nos cercam? O que faria com que nós permanecêssemos na memória dos nossos conhecidos? Quais ensinamentos e testemunhos estaríamos deixando para a comunidade em que vivemos?

A festa de Sant’Ana da cidade de Caicó, assim como tantas outras grandes festas de nossa cultura é o momento em que nós devemos voltar os nossos olhos para o sentido de nossas práticas e posturas. É o momento em que as famílias se encontram, renovamos as nossas raízes culturais e históricas e damos o sentido de nossa fé. Mas é o momento onde alguns fatores de uma cultura consumista e exterior também podem se revelar.

A proporção entre os que participam dos eventos religiosos e todos os outros que vão para os encontros somente sociais é grande em relação a esses. Isso revela a postura de que estamos mais interessados em mostrar o que temos e somos em detrimento do que realmente somos ou possuímos.

A “perca de tempo” em estar diante de uma celebração litúrgica ou o sacrifício por qualquer outra ação religiosa ou simplesmente humana é facilmente trocada por um momento de descanso ou lazer com o que mais gostamos fazer ou “merecemos” diante de um mundo de tantos trabalhos e esforços. Silenciar em um período de nosso dia ou repensar os nossos valores tornou-se uma ação cada vez mais complexa em uma cultura como a nossa.

A mentalidade de um acúmulo irrefletido ou de uma técnica sem limites faz com que o homem se torne escravo de suas próprias ações, não conseguindo nem mesmo refletir sobre o sentido de suas práticas. A riqueza ou os bens que ela proporciona passa a ser buscada como um fim em si mesmo, sem um questionamento mais aprofundado sobre o seu valor para o homem e a sua comunidade.

É o próprio Verbo de Deus, feito homem, quem nos adverte: “... mesmo que alguém tenha muitas coisas, a sua vida não depende de seus bens” (Lc 12, 15). As posses materiais, motivadas por uma estabilidade econômico-financeira, devem fazer com que o homem tenha uma vida com dignidade, junto com os que estão próximos dele. Feliz e em paz, ele pode ser reflexo do desejo de Deus de mostrar-se através de um homem plenamente realizado.

Entretanto, a vida do homem não depende de seus bens pelo fato de que ele não é só matéria, mas espírito, emoção, razão e trabalho, indo além do meramente físico. Prova disso é o próprio mistério da ressurreição de Jesus que fez com que ele fosse sempre lembrado para sempre a partir do momento em que se olhou para todas as suas ações e seus ensinamentos e comprovaram que ele estava vivo. Os discípulos de Emaús também abriram seus olhos para o fato de que a morte não tinha acabado com a cruz, mas que os ensinamentos de Jesus deixaram provas concretas de sua presença enquanto as suas ações fossem repetidas.

A Maria é o exemplo de um serviço e uma entrega a Deus que se constituiu de forma gratuita. Qualquer riqueza que estivesse a sua frente era considerada um nada diante dos bens que Deus daria por meio daquele sim livre, não só a ela, mas a toda humanidade. Todo o culto que prestamos a ela se reveste de admiração por uma riqueza que foi construída sobre a obediência, pobreza e simples dedicação ao mistério de geração do Filho do Homem.

Que nós também possamos nos preocupar diante de uma riqueza material que é colocada acima da própria pessoa humana. O homem, como plenitude da criação, deve ser sempre o centro de todas as ações humanas, a maior riqueza social e o motivo de nossas ações na busca da glorificação de uma humanidade sempre atenta à construção dos bens de Deus.