quinta-feira, 28 de abril de 2011

A paz que brota da cruz


“Mas para o meu desencanto o que era doce acabou.

Tudo tomou seu lugar depois que a banda passou”

Chico Buarque

O homem, por sua natureza, é um ser que busca a paz. Ele faz de tudo para viver essa realidade: trabalha, estuda, relaciona-se, luta, sacrifica-se e, mesmo sem querer, até erra para construir essa paz. Todo indivíduo, direta ou indiretamente, sempre está nessa fuga da insegurança e na paralela procura pela paz.

O mundo de mercado compreende bem essa necessidade humana. Ele, com as suas diversas estratégias, produtos e serviços, está constantemente lançando para as pessoas bens que prometem a paz.

Entretanto, como bens materiais, as imagens, pessoas e práticas que nos são apresentadas sempre se corrompem, desfiguram ou decepcionam. Mais cedo ou mais tarde essa paz, comprada pelo capital, se desfragmenta.

Com isso, surge uma busca desenfreada por substituir rapidamente tais bens. Para manter essa segurança aparente surge uma luta que não tem fim. Tudo, porém, torna ao mesmo lugar depois que as alegrias passam.

Jesus Cristo, após a ressurreição, apresenta ao homem uma paz que o mundo não consegue construir. A segurança que é apresentada pela mensagem do Filho de Deus é realizada na vida, quando dá à existência humana um sentido novo ser e agir.

Jesus não promete bens, pessoas ou ideologias, mas apresenta a proposta de uma vida com sentido. Encontrando o sentido de sua vida, o homem também encontra a plenitude de sua existência, ou seja, o objetivo para o qual ele existe. Chegando a tal meta, ele não precisa mais de coisas ou pessoas que dêem sentido para a vida, pois essa já o tem em si mesma.

Ao chegar entre os discípulos, proclama: “A paz esteja convosco” (Jo 20, 19). Jesus sabia que a mensagem da cruz não tinha sido completamente entendida, por isso, “depois destas palavras, mostrou-lhes a mão e o lado” (Jo, 20, 20). A palavra foi completada pela atitude.

Jesus apresentou um sentido da vida que até aquele momento não tinha sido compreendido. A paz que o homem tanto procura começou a brotar do alto da cruz. Ela é confirmada quando o Cristo ressuscitado mostra que aquelas mãos que foram pregadas à cruz e aquele lado que fora transpassado pela lança chegaram novamente à vida.

Quando a realidade de sofrimento foi transformada em mistério de sacrifício e entrega, toda a lógica humana se inverteu. O que é morte passou a ser vida. A dor tornou-se alegria. O homem é confirmado, de fato, como homem quando até mesmo seu sofrimento é abraçado por sua existência e passa a ser parte integrante de sua constituição. Ele encontra um sentido para a diversidade de sua história.

Aprendamos também com Maria a sermos pessoas que confirmam o mistério da Cruz. Ele permaneceu ao lado do seu filho durante todos os momentos de suas dores, sempre em pé. Não houve revolta ou escândalos por parte daquela que soube participar, do começo ao fim, da missão salvadora do Verbo de Deus.

Olhemos para o mistério da cruz de forma diferente, olhemos para as mãos e o lado e compreendamos que neles está a nossa paz. Como Tomé, toquemos a dor, aproximemo-nos dos sofrimentos e das feridas humanas e vejamos nelas a possibilidade de ressurreição, de verdadeiro sentido para as nossas vidas.

Essa paz, sim, é permanente, não é perecível, não desaparecem, mesmo que as alegrias deste mundo passem.

“Eis o homem”

Em um mundo de facilidades, da rapidez, do mais fácil e, portanto, do mais cômodo, do mais prazeroso, a figura do sofrimento do Cristo apresenta a proposta de um novo homem, o homem desejado por Deus.

Entretanto, esse homem não nos agrada. Qualquer imagem de sacrifício, de dor, angustia, sofrimento é, para nós, motivo de repúdio. Quando, porém, negamos essas realidades, estamos negando a nossa própria realidade humana, sempre propensa para o mal, para o pecado e para a corrupção.

Sim, estamos cercados pelo pecado, a responsabilidade pelos nossos erros está em nós e precisamos urgentemente de uma salvação. Precisamos de alguém que corrija os nossos erros e o nosso modo de agir, que sempre pende para o pecado.

Deus, em sua perfeita justiça, viu que o homem precisava ser condenado pelos seus pecados, os nossos erros não podiam passar sem ser percebidos por ele. Por outro lado, nosso Pai, nos amava de tal maneira que não queria acabar de uma vez com a humanidade. Nesse conflito, entre a justiça da condenação e o amor da salvação qual seria a saída?

Jesus Cristo, como a Palavra de Deus, traz, em si, esse equilíbrio e resposta. Ele assumiu a nossa humanidade, ele foi homem como nós. Assumindo a nossa humanidade ele passa a ser o Cordeiro de Deus, aquele que iria servir de sacrifício pelos homens. Ele morreu pelos nossos pecados.

O profeta Isaías, no antigo testamento, já apontava a realidade desse Cordeiro: “A verdade é que ele tomava sobre si nossas enfermidades e sofria, ele mesmo, nossas dores; e nós pensávamos que fosse um chagado, golpeado por Deus e humilhado!” (Is 53, 4). Os nossos erros precisavam ser corrigidos e eles o foram, em Cristo, Jesus.

Deus nos salva, por meio de Cristo, não somente porque morre por nós, mas também porque durante toda a sua vida na terra ele foi esse perfeito sacerdote. Ele é o perfeito mediador entre Deus e os homens. E assim como o advogado para fazer uma boa defesa precisa conhecer bem o seu cliente o bom mediador é aquele que conhece os que ele protege.

O Filho de Deus, nos conhece plenamente porque ele foi homem como nós, ele experimentou a fraqueza humana, as nossas limitações, as realidades difíceis que passamos. Ele conhece as nossas dores, angústias e sofrimento, ele foi humano como nós. É nesse mesmo sentido que podemos dizer com São Paulo: “[...] temos um sumo sacerdote capaz de se compadecer de nossas fraquezas, pois ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado”(Hb 4, 15).

Deus, por meio de Cristo, sabe que estamos cercados de dificuldades, de problemas em casa, como nossos familiares, vizinhos, no trabalho e até mesmo em nossas comunidades cristãs. Ele conhece cada conflito humano, cada contradição, por íntima que seja, ele foi humano como nós.

E nós? O que podemos fazer diante de tão grande mistério? Mistério esse de um Deus que ama os que ele gerou até o ponto de morrer pelos seus? O que podemos dar em troca para aquele que nos deu a própria vida e diante do erro, nos deu a possibilidade de perdão? Nós, só podemos dar uma coisa ao Deus da vida: a nossa própria vida.

Nós precisamos ver Cristo e doar para ele a nossa existência. Onde, porém, podemos encontrá-lo? Vamos encontrá-lo, primeiramente, na Santa Eucaristia que é celebrada todos os dias em muitos lugares do mundo, todos os domingos em muitas comunidades. Esse alimento que nós tomamos todas as vezes que estamos em comunhão com Deus por meio da Igreja nos fortalece a ser como Cristo, aprendemos a ser pão.

A proposta da Eucaristia não se resume um mero ícone da cultura de nossa fé. O Pão da Vida que tomamos nos ensina a sermos Pão. A Eucaristia nos lança para que nós também sejamos alimento para outras pessoas, entregando a nossa vida para que os outros também ganhem uma nova vida.

Aqui é que surge nossa maior dificuldade. Nós podemos nos emocionar com o sofrimento de Cristo, nós podemos participar do sacramento da Eucaristia, mas temos muita dificuldade de aprender com essas realidades.

Precisamos buscar Cristo não como uma realidade fora de nossas vidas. Precisamos fazer Cristo nascer em nossas vidas. Mas, como isso pode ser feito? Como podemos deixar que o seu espírito esteja em plena comunhão com o nosso? Como ser um novo Cristo?

É preciso que nós comecemos por abraçar a humanidade que nos envolve. Nossa vida está cercada de dores e alegrias, sofrimentos e prazeres, altos e baixos, e essas realidades são partes integrantes de nossa existência. Não podemos negar nenhum momento desses, mas devemos aprender a retirar, de cada uma dessas fases, alguma coisa para o nosso crescimento. A dor, assim como a alegria, o sofrimento, assim como o prazer e os momentos de dificuldades são grandes oportunidades para que nós possamos crescer.

Pilatos, ao apresentar Jesus, flagelado, coberto de sangue, dor e rejeição diz para todos: “Eis o homem” (Jo 19, 5). Mesmo sem saber ele fazia, naquele momento a vontade de Deus Pai, apresentando, a todos nós a imagem do que é ser humano. Cristo, abraçando as dores de sua e de nossa humanidade aprendeu – e com certeza também ensina a mim e a você – a ser mais humano.

O caminho da vida


É impressionante o poder que tem a economia de transformar todas as coisas em mercadoria. Na Semana Santa nos é apresentado o centro de nossa fé. De modo mais intenso, vemos o mistério da paixão, morte e ressurreição de Cristo. Todas as ações que cercam esse momento devem ser utilizadas para confirmar a nossa vontade de nos conformar ao caminho da Cruz.

Quanto custa um quilo de peixe? Por quanto podemos comprar, em média, um ovo de páscoa? Olhemos o supermercado, vejamos a mídia, passeemos em um shopping... Se acompanhamos o ritmo do que nos é pedido, podemos fazer qualquer caminho, menos o de Cristo.

Cristo decepcionou muitos homens do seu tempo quando chegou à Jerusalém montado em um jumento. Sim, ele vem para lutar em um combate contra o maior dos inimigos humanos: a morte. Nós também não reconhecemos o Cristo que nos ensina que os inimigos não são vencidos pela força, mas pela caridade, entrega essa que se materializa primeiro com a doação de nossa própria vida.

Nós também nos decepcionamos e acabamos por nos distanciar de Jesus e seu caminho quando não reconhecemos que a proposta da Cruz é via de salvação. É mais fácil compreender que o fenômeno histórico da crucificação do Enviado de Deus tenha nos salvado de uma vez por todas do que aquela postura foi um grito para o mundo...

Como isso ocorre?

“Tomai e comei, isto é o meu corpo... Bebei dele todos, pois isto é o meu sangue” (Mt 26, 26-28)

De fato contemplar tal mistério é mais fácil do que vivê-lo. Ao nos entregar o pão e o vinho na ceia Ele prefigura o corpo e o sangue que serão doados para a geração de uma vida nova no alto de uma cruz.

Nós tomamos o corpo de Jesus como alimento e o seu sangue como verdadeira bebida não só quando deixamos de participar da missa, mas principalmente quando desconhecemos que nós também devemos seguir o caminho de doação, morte e vida e plenitude apontado pelo sacramento da Eucaristia.

Viver a vida do mais fácil, mais cômodo, do mais saboroso ou que exige menos trabalho é não reconhecer o Cristo que se faz presente em todo sacrifício de vida. A “vida” que decorre desse sacrifício não é algo extraordinário, além de nosso mundo, mas uma existência plena de sentido.

Por que tudo isso?

“De fato, este era o Filho de Deus” (Mt 27, 54)

Quando contemplamos o mistério de um homem que entregou toda a sua vida para que os outros fossem felizes e ao vê-lo, sem nenhum motivo, morto e pregado numa cruz, nossa postura só deve ser de reconhecimento. Na verdade, isto é a Palavra de Deus, isto é a Sua Vontade, este é o Verbo Divino.

Fomos criados por um princípio ordenador, seguimos um caminho que nos faz evoluir para a Vida em plenitude. Do mesmo modo, assumir essa proposta é abraçar a luta por uma vida em plenitude.

De fato, esse também é o nosso caminho. Saber viver na experiência da entrega de nossa existência a um ideal de vida plena deve nos preencher, deve nos fazer felizes. Essa experiência de doação não somente nos faz seguidores de Jesus, mas nos molda ao próprio Filho de Deus.

Para que tudo isso?

“Ele não está aqui” (Mt 28, 6)

Aquele que entrega sua vida para gerar uma nova vida destrói a lógica do mundo que quantifica as coisas e as pessoas. É superado um mundo de corrupção, que degrada os homens e as relações para ser construída uma existência plena. O indivíduo deixa de ser uma máquina, com prazo de validade, funções e inteligência determinadas.

O corpo de Cristo não mais se corrompe dentro de uma estrutura de mundo materialista: ele ressuscita. Ele chega ao ápice da caminhada humana, sua morte gerou vida. Quando olhamos esse mistério de entrega é impossível dizer que isso foi um ato de um estrategista político, de um religioso fanático ou de um indivíduo insano. É projeto de Deus.

Cristo, de fato, não está mais aqui. Ele não sofre mais a corrupção do mundo, ele permanece vivo em todo aquele que doa sua vida para que outras pessoas tenham vida. Ao olhamos para o túmulo vazio temos só uma certeza: Ele não era como os outros homens.

Que o mistério dessa semana nos faça não somente memorizar ou celebrar o extraordinário fato do enviado de Deus, o Salvador dos homens. Que o caminho de Cristo seja o nosso: na entrega de nosso corpo e do nosso sangue como alimento para outras pessoas, no sofrimento que nos lapida e nos conforma à Palavra de Deus, na morte para um mundo que corrompe as coisas, as pessoas e suas relações.

O fim desse caminhar é a passagem de uma estrutura de morte para uma existência cheia de vida, de sentido, de ressurreição.

FAÇAMOS VERDADEIRA ESSA PÁSCOA!

Um olhar aberto


A mídia noticiou, na semana passada, o caso do jovem que entrou em uma escola do Rio de Janeiro, no Realengo, e matou doze crianças. Além de ter deixando muitas outras feridas, aquele jovem marcou aquela comunidade e todos os que acompanharam esse caso.

Mas o que nós aprendemos com tudo isso? A comunidade, encabeçada pelos meios de comunicação social, diante da morte do principal agente do crime ainda tenta encontrar um culpado. Culpando e penalizando alguém, ela novamente vai deitar tranqüila sobre a imagem de que a justiça foi feita.

A busca desesperada por um bode expiatório que possa ser responsabilizado por esse terrível fato sustenta o esforço social em se isentar dos eventos criminosos que são praticados ao seu redor. Nesse sentido, nós queremos montar uma imagem social que nos isente de qualquer responsabilidade ou de qualquer esforço de transformação.

O mesmo esforço foi realizado pelo povo judeu para construir a imagem do Messias. Para muitos, era escandaloso o fato de que aquele que iria retirar o povo da escravidão e da opressão fosse um homem manso, que viesse montado em um jumento (cf. Mt 21, 5), trazendo uma mensagem de amor e paz.

Era mais agradável e confortadora a imagem de um salvador forte, que viesse com uma grande tropa, montado em um cavalo, com espada na mão. Diante disso, um homem que se diz filho de Deus, mas que não anda com bolsa nem sacola, montado em cria de jumenta e prega o amor como fonte de libertação cria confusão na cabeça de quem já tinha montado uma imagem.

É muito mais fácil, para a nossa comunidade ter que culpar alguém que foi colaborador daquele jovem, que tenha vendido as armas ou o incentivado em idéias terroristas. É mais simples olhar para alguém e projetar toda a responsabilidade do que compreender que o assassino é fruto de uma sociedade doente.

O terrorismo não surge do nada, sendo fruto de uma cabeça totalmente perversa, ele é,por outro lado, construído a partir de uma rede social injusta, que cria pessoas doentes fazendo-as praticarem atos também doentios. Um homem que não se vê apoiado por ninguém ao seu redor e não tem o esforço crítico para questionar seriamente a sua estrutura social facilmente cria um mundo à sua imagem e semelhança.

O assassinato de doze crianças foi apenas a “febre”, a expressão de um problema interno muito mais complexo que envolve a sociedade. Se queremos colocar a responsabilidade em algo, compreendamos a cultura individualista em nosso meio, apontemos para nós mesmos, que geramos gradativamente, mesmo sem perceber, mais criminosos, assaltantes e doentes mentais. Essas pessoas não encontram mais nesse mundo e nas pessoas que nele habitam esperança de vivência e convivência. Podemos culpá-los por isso?

Aprendamos a olhar para a humanidade que nos envolve e a retirar dela as respostas que precisamos para a afirmação da vida nos espaços de interação. Vejamos a imagem do Cristo. Ele soube assumir essa humanidade em todas as suas dimensões naturais, como confirma o Apóstolo: “ele esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens” (Fl 2, 7).

“Por isso Deus o exaltou” (Fl 2, 9). Deus elevou àquele que soube retirar da humanidade as respostas para a vida plena. Do mesmo modo, aqueles souberam e sabem reconhecer a grandeza do enviado de Deus e a novidade que ele trouxe também construíram e constroem a plenitude da vida.

Maria é a figura que nos acompanha nesse trajeto de compreensão da inovação trazida pelo Filho do Homem. Ela, mesmo sendo de família simples, não hesitou em ser a mãe do Messias. Maria também se abriu a uma proposta humana, filosófica e teologicamente inconcebível, gerar Deus em um ventre humano. Abrindo-se ao mistério, a virgem Mãe de Deus soube realizar o perfeito encontro com Cristo, Verbo de Deus, Palavra de vida.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

É preciso morrer

Ao entrarmos em um Shopping vemos o grande ícone do mundo moderno. O próprio nome já indica sentido: “comprando”. Esse ambiente não revela apenas um espaço de múltipla escolha de produtos, mas uma necessária postura de quem nele adentra: “temos que comprar”.

A grande variedade de preços, a enorme competitividade e os múltiplos serviços que encontramos no mercado atual nos dá a impressão de completude. Não precisamos ir muito longe de nossas casas para obter aquilo que quisermos. Basta um simples telefonema ou um rápido clique para que nossas necessidades sejam satisfeitas.

Essa realidade revela, por outro lado, uma face que não conseguimos ver. A velocidade da compra é a mesma que tornam os produtos obsoletos. Afinal, quanto tempo durou nossa primeira televisão? Quanto tempo durará a que está em nossa residência? O que está falando a mídia sobre os computadores que eram de última geração há cinco anos?

Quando vamos a um hipermercado, ou algo do gênero, que vende do creme dental ao mais recente aparelho de televisão temos a impressão de que nada que temos em casa nos serve. A propaganda está constantemente, de forma direta ou indireta, a nos dizer que estamos cercados de velharias e que, rapidamente, devemos trocá-las para nos afirmar homens do século XXI.

Esse caminho cria na pessoa uma cultura do lixo. Essa rápida desvalorização dos produtos produz uma enorme “sobra” em nossas sociedades. Esses detritos refletem a estruturação de uma gradativa cultura de morte. Nesse caminho, o homem que não segue essa cultura do consumo, mais cedo ou mais tarde também se torna “sobra”, é um morto para o mundo.

O apóstolo Paulo, ao escrever aos Romanos aponta uma saída que é superação de uma cultura de morte: “[...] os que vivem segundo a carne não podem agradar a Deus” (Rm 8, 8). Os que vivem acompanhando uma cultura de morte não podem entrar em comunhão com o Deus da vida. É preciso entrar no espírito da Vida.

Nós encontramos essa vida, da forma mais clara, na pessoa de Jesus Cristo. Ele é o ícone da verdadeira ação que transformou a morte em vida. Paulo complementa: “Se alguém não tem o espírito de Cristo não pertence a Cristo” (Rm 8, 9). É em Jesus que encontramos o sinal maior daquele que destruiu morte quando morreu para o mundo no serviço e no amor aos homens.

Aí está a resposta: para destruir a morte e sua cultura é preciso morrer fora sua dominação, ou seja, no Espírito de Vida, que dá a vida.

A imagem da ressurreição de Lázaro apresenta-nos a imagem da nova vida que é dada ao homem que morre em Jesus. Tomé, chamado gêmeo, compreendeu essa caminhada quando chamou os outros: “Vamos nós também para morrermos com ele” (Jo 8 16). É preciso aprender a morrer para um mundo de morte para, com Cristo ganhar uma vida nova.

Lázaro saiu da morte quando, dentro de um túmulo, cheio de mal cheio, ouviu Jesus o chamando para fora (cf. Jo 8, 43). Ele, porém, só conseguiu viver de forma plena quando viu o mundo em que vivia com seus próprios olhos e andou com suas próprias pernas em um caminho, antes confuso, agora sem a interferência de ninguém dizendo a ele o certo ou o errado.

Nessa caminhada quaresmal, olhemos para a imagem de Maria e vejamos nela o exemplo daquela que também soube morrer. Deixando ser feita em si a vontade do Pai, a jovem de Nazaré se entregou a um mistério que ultrapassava a compreensão humana. Ela, com seu Filho, ressuscita e entra na vida eterna.

Superemos essa cultura de morte que transforma o mundo, os objetos e as pessoas em projeto de “sobra” de desejos individuais. Aprendamos a morrer para essa cultura. Busquemos a vida que nos é apresentada no verbo de Deus, Jesus Cristo. Nele vamos completar a caminhada da Palavra de Deus que andou sobre a terra: vida, sofrimento, morte e ressurreição.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Ver o invisível

“Tinha uma pedra no meio do meio do caminho”

Carlos Drummond de Andrade

Dentro das discussões da Campanha da Fraternidade 2011 que traz a questão ambiental como sua principal preocupação, a palavra conscientizar nunca foi tão mencionada. A saída que primeiro surge aos nossos olhos diante dos problemas acerca do meio ambiente sempre envolve a educação das pessoas para que tomem ciência dos males que atingem a natureza.

Informação nunca é desnecessária. Mas quem nunca ouviu falar, por pouco que seja, sobre o aquecimento global? Buraco na camada de ozônio? Desmatamento da floresta amazônica? Desertificação? Ou apenas mudanças climáticas?

E se tudo isso for desconhecido, quem não sentiu, pelo menos, que a temperatura subiu deixando o tempo mais quente dentro ou fora dos espaços urbanos?

Essas questões só nos mostram que precisamos superar esse estágio das discussões “conscientizadoras” e ir para a mudança de postura diante dos bens naturais. Devemos prosseguir a parte do “discutir” o problema e passar para o “resolver”.

“O quê?”, “Como?”, “Quando?”, “Com quem?” e “Até quando?” devem ser questionamentos que pautem as nossas reflexões acerca dos obstáculos que identificamos e enfrentamos.

Jesus Cristo aponta um problema que a nossa comunidade traduziu no velho ditado: “O pior cego é aquele que não quer ver”. Diz o Senhor por meio de João: “Se fôsseis cegos, não teríeis culpa; mas, como dizeis: ‘Nós vemos’, o vosso pecado permanece” (9, 41).

A isso podemos acrescentar, o nosso erro permanece e se multiplica quando sabemos o problema, temos a capacidade de solucioná-lo, mas não o fazemos porque queremos sempre colocar a culpa no outro.

Dizer que o desmatamento ou o lançamento de gases na atmosfera é de responsabilidade somente nas indústrias e dos que possuem o grande capital é se ausentar se uma estrutura que chamamos comum-unidade.

Afinal, quem compra os produtos que são fabricados pelo grande capital? Quem utiliza a energia produzida à custa de uma grande emissão de gás carbônico na atmosfera? A indústria só cresce de forma insustentável pelo fato de ainda haver pessoas que também consomem de forma irrefletida.

São Paulo aponta a saída para um mundo que ainda não reflete: “Vivei como filhos da luz” (Ef 5, 8). Somente nós temos a capacidade de superar os problemas por meio de uma reflexão sobre ele. Um obstáculo existe para ser superado por meio da inteligência e força humana.

Aprendamos a ver em cada limitação algo invisível: a possibilidade de superação. Pensar somente o problema não é o suficiente para atravessá-lo é preciso uma tomada de posição. Mesmo que se exija desgaste físico, intelectual ou espiritual, a resolução de todo conflito é sempre melhor do que a estagnação de uma reflexão sem prática.

Sejamos como Maria, luz para o mundo. Diante das realidades confusas que enfrentava, ela refletia sempre em seu coração. Aquela mulher só conseguiu dar à luz àquele que foi Luz do mundo por que sabia refletir, iluminando o que estava obscuro em sua vida. Maria soube ser, com isso, verdadeira e plena portadora da luz.

Vejamos o que está invisível diante de todo obstáculo. Sejamos, com nossa inteligência e força, luzes para o que ainda está obscuro aos olhos do mundo. Discutir a complexidade das pedras que surgem em nossos caminhos não faz sentido algum se não for para retirá-la de nossa frente, escalá-la ou apenas contorná-la, prosseguindo o nosso caminho rumo àquele que diz: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 9, 5).

Qual alimento buscamos?

Qual a diferença entre uma porção de batatas fritas ou uma pizza e um prato com arroz, feijão, bife e salada? Ambos não saciam a fome? Por que, muitas vezes, gostamos mais do primeiro e o buscamos em vez do segundo alimento?

Duas explicações podem surgir dessa procura. A primeira é que podemos não saber que, mesmo ambos saciando a fome, o segundo é mais nutritivo do que o primeiro e fortalece o organismo para passar mais tempo sem exigir outra alimentação. A segunda é que, mesmo sabendo, somos teimosos em ir para o mais saboroso e fácil de adquirir. Não queremos o esforço de preparar o primeiro e degustar o seu sabor menos “atraente”.

A nossa sociedade está em um caminho semelhante. Estamos buscando satisfações aparentemente mais “saborosas” e equivocadamente mais “nutritivas”. Porém, com essas, as necessidades humanas retornam de forma mais constante e intensa.

A droga, prostituição, corrupção ou qualquer outra prática má é reflexo de uma fome humana, de uma necessidade vital. O homem, qualquer que seja, não busca a bebida ou qualquer outra droga, sexo ou qualquer desrespeito ao outro, ou mesmo a busca desenfreada por bens materiais por ser essencialmente mal. Ele apenas tem fome.

Entretanto, que fome é essa? É, por acaso, uma necessidade meramente biológica ou material? A única necessidade que há no homem é a de sentido. Qualquer indivíduo, por mais rico ou sábio que seja, se não encontra sentido em sua vida, mais cedo ou mais tarde, se sentirá o pior de todos os viventes.

O “vício”, “pecado”, “crime” ou mesmo o menor dos erros é sempre uma troca injusta por algo que satisfaz, aparentemente e temporariamente, o homem. E ele busca-os como os alimentos considerados “não saudáveis”: ou porque desconhece o valor de algo mais nutritivo ou pelo fato de buscar o que é mais fácil e que não exige sacrifícios.

Cristo apresenta um alimento essencial para o homem. E ele o indica em si mesmo: “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra” (Jo 4, 34). Fazer a vontade do Pai é realizar o sentido para o qual fomos criados. Obedecer à vontade daquele que nos criou é tornar real o objetivo de nossa existência.

Se queremos um exemplo de vida, um caminho ou sentido para a nossa existência, ele mesmo se apresenta a nós: “Sou eu, que estou falando contigo” (Jo 4, 26). Está em Jesus a realização da vontade do Pai, ele é a real e material Palavra de Deus. Seguir esse Verbo é garantia de sentido da vida.

Em Cristo está o alimento que o homem tanto procura e luta por obter. Ele é a água que não causa mais sede, porque sacia de forma plena. Já que em Cristo encontramos a humanidade de forma plena, ao nos aproximarmos dele também encontraremos a nossa humanidade.

Olhemos o exemplo daquela que sobe se fartar com esse alimento de vida. A jovem de Nazaré ficou “cheia de graça” quando disse “faça-se a Sua vontade”. Maria não procurou mais outra coisa no mundo a não ser fazer a vontade de Deus e é por isso que ela pode e deve ser chamada de ser humano que encontrou a plenitude da vida, ou mesmo santa.

“Quem beber da água que eu lhe darei, esse nunca mais terá sede” (Jo 4, 14). É Cristo, Palavra de Deus, quem promete um sentido pleno para a nossa vida, um alimento que nos sacia de forma eterna. Com ele e nele nós não precisamos buscar mais a satisfação de outra necessidade, por grande que seja, porque encontramos a Palavra que, na afirmação de nossa humanidade, aponta para a ressurreição.

Palavra que gera vida: “Escutai-o”

O que acontece conosco quando olhamos fixamente para um objeto luminoso? Se conseguirmos passar um bom tempo olhando sem nenhuma proteção para o sol, o que nos acontece? Temos necessidade de ficarmos olhando permanentemente para uma luz? Na verdade, qual a sua função?

Nós vivemos em uma estrutura social, econômico, educacional e até religiosa que, muitas vezes, troca os meios pelos fins. Gostamos de trocar a felicidade em si pelos instrumentos que poderiam construí-la. Deixamos a possibilidade de edificação de nossos projetos pelas imagens e sonhos que deles fazemos. Queremos um mundo diferente, mas esquecemos de construí-lo.

Os discípulos, quando olharam para o Cristo transfigurado, ficaram fascinados com aquela imagem. O rosto do homem que Deus Pai tinha projetado era exatamente aquele: um rosto brilhante com roupas puras, ambos como luzes (cf. Mt 17, 2). O homem também é chamado a assumir essa figura: Ser puro, livre de qualquer mancha, perturbação, maldade ou maledicência.

Entretanto, aquela luz estava sendo irradiada não somente para ser vista, contemplada permanentemente. É o próprio Deus quem ensina o seu valor: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o” (Mt 17, 5). Aquela luz fora criada e lançada no meio dos homens para iluminar, para clarear o mundo ao nosso redor, para mostrar o caminho.

É nesse exato momento em que o “calo aperta”. Afirmamos gostar da verdade sobre os fatos, queremos saber a realidade dos conflitos que estão ao nosso redor, evitamos a mentira e tudo àquilo que obscurece a nossa visão. Porém, quando essa nova compreensão cobra de nós uma mudança de postura, de concepções de mundo e de atitudes, começamos a baixar a cabeça, ficamos realmente com medo e não sabemos o que fazer. A luz começa a nos cegar.

“Escutai-o” é a ordem de Deus. E escutar significa não somente decodificar a mensagem, mas converter a nossa postura a partir do momento em que essa palavra se torna vida dentro de nós.

Porém, essa “geração” da palavra que foi pronunciada implica luta e esforço. Tornar essa palavra, efetivamente, carne, ou seja, vida objetiva é o caminho daquele que a ouve, a aceita e se sacrifica para que ela esteja presente no meio dos homens. São Paulo compreendeu bem esse sentido quando convoca Timóteo em sua segunda carta: “sofre comigo pelo evangelho” (2 Tm 1, 8b). Saibamos tornar essa boa notícia vida, mesmo que isso nos doa e a nossa própria vida entre em perigo no meio dos homens

Ouvir essa Palavra e contemplá-la pode até ser fácil, mas concretizá-la e torná-la viva em meio a uma geração de muitas palavras é o caminho que devemos trilhar, à luz da Palavra mais viva que conhecemos: Jesus Cristo. E se Cristo é Palavra pronunciada por Deus, feita carne e transfigurada em luz é porque, em sua vida, ele está a nos ensinar o caminho por meio de seus próprios passos. O caminho construído, trilhado e iluminado pelo Senhor aponta-nos para a Verdade que nos dá Vida, e vida feliz.

Nesse caminho, aprendamos com Maria a não temer essa Palavra. Ela soube gerar a Palavra de Deus quando soube ser serva, doando-se ao mistério de salvação e entrega a serviço do outro, mesmo à custa de perseguições e dores. Ela ouviu, aceitou e gerou o Verbo de Deus, por isso tem autoridade suficiente para nos dizer: “Fazei tudo o que Ele vos disser”.

E ao dizer tais palavras a jovem de Nazaré se conformava Àquele que constantemente também nos diz: “Escutai-o”.