segunda-feira, 29 de março de 2010

Deixar Deus ser Deus



A entrada de Jesus em Jerusalém é, para nós, um exemplo de humildade. Cristo, sendo Deus encarnado, não fez questão de ser semelhante aos homens e salvar a humanidade por seu sacrifício na cruz. A esperança em um salvador que desse a liberdade ao povo de Israel permanece nos judeus que não reconhecem Jesus como tal libertador.

Essa desconfiança parte da imagem esperada de um redentor que deveria dar uma liberdade somente externa e política para aquele povo. A libertação interior parecia ser esquecida por aqueles homens que não via na Palavra de Deus encarnada a possibilidade de libertação dos pecados.

Do mesmo modo, queremos algumas vezes criar a imagem de um Deus que seja à nossa imagem e semelhança, como nós desejamos que Ele seja. O homem parece criar deuses segundo a sua necessidade e a partir de sua compreensão do mundo, rejeitando quando a Divina Providência se manifesta em momentos não esperados.

Essa postura diante de Deus impossibilita-nos de compreender a realidade com um olhar mais amplo. Deus não vai se manifestar somente segundo as nossas categorias, ele está além de nossa possibilidade de compreensão e de nossos juízos.

Tornamo-nos nossos próprios deuses quando negamos a existência da manifestação Divina em momentos e realidades consideradas “indignas” e não deixamos Deus nascer em nossa realidade. Nesse movimento, nos enchemos de nós mesmos e não deixamos espaço para Deus.

Como palavra de Deus manifestada aos homens, nosso Senhor nos ensina que o movimento de sua divindade se deu pelo seu total esvaziamento (cf. Fl 2, 7s). Por mais que a humanidade de Jesus tentasse afastar a dor para a aceitação de sua vida, ele soube deixar seus desejos de lado para receber em sua vida o Plano de Deus.

Que nós saibamos deixar Deus ocupar o lugar de absoluto em nossa existência. Ele não vai se submeter a nossas limitadas categorias por que é perfeita, não pode entrar nas nossas fôrmas imperfeitas, por que é Deus.

Somente por meio de uma abertura absoluta à manifestação de Deus é que podemos dar início a um processo de kénosis, semelhante ao de Cristo, e ir à procura do sentido de nossas vidas que só se manifesta na total aproximação de nossas ações aos planos divinos. Para isso, faz-se necessário aceitar o fato de que Deus surge onde menos esperamos, seja em pequenas ações, pessoas ‘improváveis” ou realidades “indignas”. Deus não perde a sua magnitude por se aproximar de nossa humanidade, pois é Deus. Pelo contrário, pode chegar às últimas conseqüências para salvar o homem do distanciamento de sua Glória.

“Não peques mais”

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Muitas vezes, o homem olha para si mesmo e para os outros como animais de carga. Somos caracterizados pelas somas de nossas ações. Tudo que fazemos vai se acumulando em uma espécie de caderneta de poupança, onde além dos atos, somam-se também “juros” que somente distorcem a verdadeira personalidade do indivíduo.
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Ao olharmos para um ex-detento, alguma pessoa que deixou a prostituição, o crime ou mesmo alguém que volta a estudar ou trabalhar depois de um longo período de ociosidade, por exemplo, projetamos logo uma crítica pessimista sobre eles. Não acreditamos que tais pessoas possam voltar a ser indivíduos com dignidade.
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Por outro lado, o homem tem uma possibilidade que lhe é singular: a resiliência. O termo, que provém da física, caracteriza a capacidade do objeto de voltar a seu estágio normal depois de uma adversidade. Algumas molas, por exemplo, tem a característica de retornar à sua estrutura anterior depois de ser esticada. Assim é a pessoa humana, ela é capaz de voltar ao que sempre foi, a possuir uma dignidade a ela inerente, mesmo após um momento de dificuldade, de desvios de sua essência ou estrutura.
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Quando vemos os erros do passado e os condenamos, estamos fadados a permanecer eternamente olhando para trás, esquecendo assim de viver o presente e dar a nossa vida esperanças de um futuro melhor. Os equívocos atravessados devem assumir somente o caráter pedagógico de nos fazer conscientes de não mais repeti-los. Meus erros me ensinam a partir do momento que sei olhar para eles como aprendizados, não como cargas que serão acumuladas por toda a minha vida.
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A atitude de Jesus de continuar escrevendo no chão depois que lhe apresentaram o caso de uma mulher adultera (cf. Jo 8, 7-8), mostra-nos que a concepção Divina de justiça difere totalmente da nossa, Deus quer um coração arrependido e decidido a voltar para Ele. A condenação daquela mulher ao apedrejamento eliminaria toda esperança de conversão de vida. Se Deus sempre agisse em um plano lógico de justiça, ninguém subsistiria (cf. Sl 129, 3) porque estamos sujeitos aos mesmos erros.
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É nesse sentido que o profeta Isaías nos adverte: “Não fiquem lembrando o passado, não pensem nas coisas antigas” (Is 43, 18) e São Paulo dá o seu testemunho de vida: “[...] não acho que eu já tenha alcançado o prêmio, mas uma coisa eu faço: esqueço-me do que fica para trás e avanço para o que está na frente” (Fl 3, 13). O que Deus quer do homem é um espírito decidido a voltar para Ele, mesmo depois de um período de afastamento.
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Ao omitir-se a fazer um julgamento, Jesus propõe que o olhar do que está em pecado deve ser para frente, adiante. O apego ao julgamento de uma atitude passada impossibilita o homem de perceber que ele é muito mais do que suas ações. Quando Jesus diz: “Pode ir, e não peques mais” (Jo 8, 11), ele mostra a sua esperança no homem que, mesmo com limitações e deficiências, sempre se apresenta como imagem e semelhança do Divino, como possibilidade de conversão por meio de um crescimento humano e comunitário.

Deus quer filhos


A história do povo brasileiro, assim como de toda a Europa ocidental, foi constituída sob as bases de uma relação hierárquica paternalista. A autoridade geralmente é considerada como um poder inquestionável, que sujeita todos os que estão a ela subordinados. “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”...

Tal compreensão não gera um desenvolvimento nos indivíduos, nem em quem manda, muitos menos em quem segue as normas. Na relação de mando, há somente uma visão da realidade, a do superior, que como homem, é também limitado. Quando há o silenciamento do outro, parte importante do contexto é desconsiderado, já que ele também tem uma visão de mundo, algo que pode ser trazido de novo para a interação.

O filósofo alemão Jürgen Habermas (1929-), propõe uma ação que seja fundada no diálogo. Todos os indivíduos que estão em uma relação têm o direito e até o dever de emitir sua opinião. Só com um processo livre e democrático de intercâmbio entre os homens, torna-se possível desenvolver ações éticas mais substanciais. A autoridade deve ser aquela que coordena todo o organismo social, que mantém o equilíbrio na troca de habilidades e dons.

Na parábola do filho pródigo (cf. Lc 11, 32), o jovem que volta para o pai, depois de ter se afastado dele, acha-se indigno de se aproximar do seu genitor. Ele acha-se na posição de escravo, de menor do que os que estão ao redor de seu pai, por ter pecado contra ele. Muitas vezes nos sentimos inferiores por não possuirmos certas capacidades e passamos a absolutizar o outro como um superior inquestionável. Criamos, assim, novos ídolos.

Ao acolher e comer com os pecadores (cf. Lc 15, 2), Cristo mostra que a compreensão que Deus tem em relação a nós, não é a mesma que temos de nós mesmos. Ao receber quem pretende voltar para os braços do Pai por meio do sincero arrependimento, ele demonstra uma justa misericórdia que Deus tem pelos seus filhos. Quando pecamos, e se queremos estar perto Dele novamente, não passamos a ser escravos de Deus. Continuamos Seus filhos, agora regenerados por Seu amor.

É nesse sentido que o pai festejou com a volta do filho pródigo, ele não queria um empregado, mas apenas o filho de volta em seus braços. Por que come conosco, Deus sabe de que barro somos feitos, sabe que temos limitações, por isso está sempre à porta, esperando o nosso arrependimento.

Deus não quer escravos, pessoas que estejam irrefletidamente aos seus pés, presos a Ele. Porém, quer filhos que voltam para os seus braços depois de um longo tempo de separação. Ele não muda a relação conosco depois de pecarmos, mas nos dá um abraço paternal quando diz: “Vá e não peques mais”.

Ninguém converte ninguém


Quando vemos a estrutura política do Brasil ou os recentes acontecimentos ambientais do planeta, qual a nossa postura? Quais os motivos de tanta injustiça, corrupções, desvios de condutas, desastres naturais e humanos? A resposta parece ser sempre óbvia: a culpa é dos homens. Porém, outra reflexão deve surgir a partir disso: de quais homens estamos falando?

Crescemos na cultura do julgar. Ao nos depararmos frente a fenômenos sociais, somos logo tentados a emitir opiniões prévias, pré-conceitos. Essa postura, muitas vezes, limita a realidade do fato exatamente porque o reduz à nossa visão, que é sempre limitada. O pior de tudo isso é que tais posições quase sempre são tomadas com a isenção de quem julga, o conflito é sempre do outro, a origem dos erros está sempre distante de nós.

O problema se amplia quando somos levados a assumir a postura de “salvadores da pátria”. Para tudo temos soluções, respostas prontas e condenações na ponta da língua. Tomamos a postura de redentores da humanidade e esquecemos que a vida é mais ampla do que nossa compreensão pode abraçar e nossas atitudes podem realizar, não vemos nem sequer uma fagulha do problema. Falta-nos, com isso, humildade para perceber esse conflito.

Cristo mostrou-nos o verdadeiro modelo de redenção. Ao chegarem para ele apontando para um problema distante do seu contexto, ele se punha a aproximar e problematizar o fato, fazendo saber que nada é distante de nossa existência, que não estamos isentos de nenhum erro e que não podemos assumir a postura de juízes absolutos dos fatos.

Ao trazerem a notícia da morte dos galileus por Pilatos (cf. Lc 13, 1), Jesus fez saber que todos estão sujeitos à mesma realidade: “se vocês não se converterem, vão morrer todos do mesmo modo” (Lc 13, 3). Se não estivermos atentos ao que ocorre no mundo, podemos cair nos defeitos que apontamos. É nesse sentido que não podemos assumir a postura de juízes nem de salvadores do planeta. Somos homens, estamos na mesma barca, sujeitos às mesmas adversidades.

Que o espírito da Palavra do Deus encarnado nos torne mais humanos e menos censores do mundo. Aprendamos que a conversão do homem só se realiza efetivamente por meio de uma sincera busca de crescimento interior, que ninguém converte ninguém, mas só se modifica a si mesmo. A verdadeira transformação de vida se realiza concretamente a partir do momento em que nós sabemos olhar atentamente para Jesus, tomando-o como único modelo capaz de tornar o homem mais homem e a vida efetivamente vida.

“Escutem o que ele diz”


Passadas as alegrias do carnaval devemos nos questionar: isso tudo está realmente valendo à pena? Que sentido está por trás de todas essas festividades? Até que ponto tudo isso nos confirma como seres humanos, comprometidos com a nossa própria vida e com a vida do outro?
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Como seres humanos, sim. Sempre se faz necessário um período de descanso, lazer, para renovar as forças para o trabalho cotidiano. Mas, o carnaval foi mesmo um momento para isso? Ou, pelo contrário, ele está aos poucos se tornando para muitos um período do “pode tudo”?
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Essa aparente “liberdade” sempre vai de encontro à própria dignidade da vida humana. Bebe-se desregradamente, brinca-se sem limites, relaciona-se com o outro sem nenhum valor moral que a controle. Isso está sendo mesmo racional?
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Pedro, do mesmo modo, ao ver Jesus transfigurado, demonstrando toda a sua glória, queria permanecer naquele estado de júbilo (cf. Lc 9, 33), não refletiu qual o significado daquele fato. Como muitos de nós, ele queria uma felicidade, mas esquecia de construí-la. Buscava, por isso, algo já pronto, uma alegria comercializável.
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A atitude de subir à montanha e transfigurar-se para os discípulos tinha o objetivo de antecipar a imagem do Cristo ressuscitado, mostrar aos homens qual seria o fim daqueles que seguissem Jesus. Porém, para que isso se realizasse, se faria necessário ouvir a voz de Deus que diz; “Este é o meu Filho amado, o Escolhido. Escutem o que ele diz!” (Lc 9, 35).
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Nossas alegrias só são reais se elas possibilitam o nosso crescimento humano, uma subida para a nossa glorificação. Porém, parecemos esquecer que toda subida necessita de esforço, empenho e perseverança.
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É somente por meio dessa difícil elevação que vamos libertando-nos de todos os vícios que nos pesam e impedem a caminhada para o alto. Para isso, a imitação das atitudes do Cristo é a única via para dar um sentido concreto a nossa vida. Humildade, sacrifícios e renúncias são posturas de quem quer construir uma existência real e plena.
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Que nós saibamos construir com Jesus uma vida gloriosa, de verdadeira alegria por meio do esforço, do respeito ao outro e da busca por uma sociedade mais humana. Que nem o homem e nem a felicidade que é seu desejo primeiro possam ser trocados ou comprados, mas concretamente constituídos sob a Palavra de Deus que em Cristo se mostrou o mais eficaz caminho da Perfeição.

“Não só de pão”


“O homem é aquilo que come”.

Essa frase foi dita por um filósofo alemão do século XIX chamado Karl Marx. Ela foi escrita para apresentar uma visão material do mundo. Para Marx, não haveria mais nada além do plano da existência concreta. Porém, apesar de limitada, tal afirmação descreve bem a organização de nossa sociedade. O homem de hoje parece viver unicamente em função da satisfação de seus desejos mais básicos.

O sistema capitalista, marcado principalmente pela produção de bens de consumo, tem como objetivo fundamental o acúmulo de capital por meio do lucro. Essa meta torna-se absoluta a partir do momento em que todos os espaços, bens materiais e indivíduos são absorvidos por essa prática. O capitalismo mercantiliza o mundo e a vida. Tudo passa a ser quantificado, qualificado e valorado em função do mercado, torna-se produto a ser vendido ou objeto de troca.

O homem não escapa desse jogo. O conceito de humanidade vai sendo trocado pelo de utilidade. Ele vale o quanto – e enquanto – produz e é esquecido quando não participa ou deixa de contribuir com sua comunidade. Nesse mesmo sentido, o outro passa a ser visto como meio para um benefício particular, se ele tem algo a oferecer, possui algum valor social, mas quando não, é esquecido. Com isso, conceitos como fraternidade, solidariedade, entrega, colaboração e amor desaparecem das relações humanas.

A superação de uma concepção materialista da sociedade, e do homem como fruto desse contexto, não pode ser realizada sem uma formação ética de seus indivíduos. Faz-se necessário uma compreensão moral da pessoa voltada para o seu caráter integral. Ele não é somente reflexo de uma interação física, mas indivíduo simbólico, cultural, histórico, emocional, biológico, racional e espiritual, ou seja, é um complexo orgânico.

A primeira tentação de Jesus, apresentada por Lucas, demonstra a ação maligna que propõe a satisfação material como meio de alcançar uma felicidade meramente corporal. O Cristo responde a tal investida com uma proposta de compreensão humana: “Não só de pão vive o homem” (4, 4). O homem não vive somente para alimentar-se, vestir-se ou procriar, mas para ir além de tudo isso, sendo imagem e semelhança do Divino.

Por isso, utilizar da razão para compreender-se não somente como animais sociais é o caminho mais positivo para uma humanização do indivíduo. De fato, ele é aquilo que come, mas é também aquilo que transforma, que cria, que pensa... Ele é mais, porque é homem, porque é imagem e semelhança de Deus.